quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Anjos?

O anúncio chega como sempre, inesperado. Homem, 17 anos (como se pudessemos chamar "homem" a um puto com 17 anos), paragem cardio-respiratória após trauma craneo-encefálico, intubado, instável. O ambiente adensa-se na sala de reanimação à medida que chegam novas informações "O médico do INEM diz que foi uma agressão", diz o anestesista ao chegar. Preparamo-nos, os enfermeiros, os médicos, o ambiente é de cortar à faca e quase se consegue ouvir os pensamentos de todos "Temos que salvar este puto". O helicóptero aterra no tecto e faz estremecer as paredes quase fazendo com que esqueçamos o nosso próprio estremecimento. O puto chega, "agredido na rua, em coma à chegada do INEM, qundo o tentaram intubar havia sangue por todo o lado e ao tentarem aspirar entrou em paragem. Sete minutos de reanimação, 2 mg de adrenalina, recuperou o pulso mais o coma continua. A sala explode em actividade, ordens do líder da reanimação, pedidos do enfermeiro responsável. O puto não está bem, quero-o no TAC dentro de 10 min, se estiver a sangrar no céerebro quero-o no bloco o mais rapidamente possível, dispara o líder. As coisas encaixaram-se bem. Olho para o miúdo, franzino, mas com os sinais de uma rebeldia própria da idade, o cabelinho rapado com entalhes desenhados, a t-shirt de um grupo de rap qualquer, os ténis nike vintage com atacadores de várias cores, no bolso das calças cigarros e haxixe. Sinto-me genuinamente triste por este puto, provavelmente envolveu-se numa luta de galos por uma merdice qualquer e agora... Vamos para a sala do TAC, a maca rodeada de pessoas vestidas de branco... é estranha esta imagem, alguém numa maca, adormecido, ligado a máquinas que passa no corredor rodeado de seres vestidos de branco. Anjos para o protegerem ou anjos para o guiarem para o destino final? Nunca sei. O TAC não é bom, tanto tempo sem oxigénio... Outra imagem que me marca a cada vez: alguém completamente só de um lado do vidro e do outro os tais anjos de vida ou da morte que olham. Todos focados no vidro ou num écran de computador, enquanto um puto entra e sai de uma máquina em forma de túnel. É quase premonitório agora que penso nisso, ficará do lado de cá ou do lado de cá? Não, o cérebro foi-se, vai para os cuidados intensivos, estabiliza-mo-lo para dador de órgãos, é pena era um puto. Entretanto um polícia obscuro atrás de uma linha telefónica liga á mão do puto: "Aqui é a polícia minha senhora, o seu filho está no hospital..."

3 comentários:

Naná disse...

Até me arrepiei... ao chegar à última frase...

Carla Santos Alves disse...

...nao sei o que dizer. Li e reli o texto. Vocês têm uma missão, mesmo.

Há finais muito tristes coo haverão finais muito felizes...

Beijinho

Helena Barreta disse...

Bolas, até me custa respirar.

Um abraço