quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Conto de um Homem Só: Maryusz.

Todos no serviço o conhecem. Os das ambulâncias também. Afinal Maryusz é um dos nossos clientes mais frequentes. Alto e magro, olhos de um azul profundo embaciado pelo àlcool que lhe dilui o sangue. Acho que nunca ninguém o viu sóbrio, só menos alcoolizado. Mas Maryusz não é agressivo. Normalmente é trazido pela ambulância porque alguém o encontrou inconsciente numa esquina qualquer de Lausanne. Faça frio ou faça sol, Maryusz bebe até perder a consciência. E bebe tudo, inclusivé o àlcool que utilizamos para desinfectar as mãos no hospital. Já tentámos de tudo para ajudar este homem, mas parece que beber até morrer é a sua missão na vida. 
De vez em quando, no frio do inverno, Maryusz aparece na nossa sala de espera. Bêbado mas correcto, procura apenas um lugar para se aquecer. Traz consigo toda a sua vida: uma mochila com bebida e a sua gaita de beiços. Senta-se num canto e começa a tocar. A melodia sai perfeita e envolve todos na sala e toca-nos bem no fundo de nós. As notas são carregadas de sentimento, a melodia é bela e límpida mas carregada de tristeza e de nostalgia, de sofrimento e angústia. De saudade. Ao observar Maryusz tocando a sua gaita num canto da sala, olhos fechados em esforço e, enrolado sobre si mesmo como só os doentes com muita dor o fazem, percebo que há mais acerca deste homem do que aquilo que temos á vista. 
Certo dia Maryusz chega como em tantas outras vezes, numa maçã de ambulância inconsciente e frio. Nesta como em tantas outras vezes Maryusz lá fica a curar a sua bebedeira num canto das urgências. Quando acorda Maryuz chora. Foi a única vez que o vi sóbrio e a única vez que ouvi a sua história.
O meu nome é Maryusz e sou polaco. Nos ultimos anos tenho vagueado pela Europa para esquecer. Bebo para não me lembrar, bebo para dormir. Quando estou sóbrio não suporto a dor e por isso nunca mais o quis estar, pois sóbrio lembro-me deles, da minha família. Vivíamos em Varsóvia onde eu era professor de música no conservatório nacional. Eramos felizes os quatro, eu a minha bela mulher e os nossos dois meninos de 4 e 7 anos. A vida sorría-nos. Até que num normal dia de inverno, ao regressarmos a nossa casa nos subúrbios da cidade tivemos um acidente. Eu saí do carro ileso mas só eu. Abracei os meus meninos, tão frios e pálidos que estavam. Tentei aquecê-los com o meu calor mas eles nunca regressaram para mim, Beijei a minha mulher e abracei os meus filhos mas as minhas lágrimas congelaram. E o meu coração também.
Há poucas semanas Maryusz foi encontrado também ele gelado e pálido mas, segundo os tripulantes da ambulância no local, foi a única vez que viram um sorriso na cara de Maryusz.


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Conto de Um Homem Só

A sua vida era calma e pacata naquela aldeia plantada no sopé dos Alpes. Agricultor uma vida inteira, mulher, três filhos, uma cerveja com os amigos no fim do dia, a igreja ao domingo. Os habitantes da povoação estimavam-no por ser sempre prestável e tinham-se já habituado ao ser carácter reservado e de poucas falas, por oposição à frenética atitude dos outros homens da terra, sempre ansiosos por ser o mais homem de todos. 
Sentia-se cansado. Fisicamente cansado, a labuta diária nos campos e colheitas era dura normalmente mas nada justificava a sua falta de energia. Febre algumas vezes à noite e falta de apetite. A sua mulher, zelosa, dizia-lhe para ir ao médico de família mas ele, não, que ia melhorar, afinal já há mais de um ano que não vamos de férias e isto com uns ben-u-ron's vai ao sítio. Mas o cansaço não o larga, cada vez mais cansado, sem apetite, a perder peso. Finalmente rende-se à evidência e consulta o seu médico de uma vida inteira.
Análises ao sangue, uma radiografia aos pulmões, a tensão e a respiração perfeitamente normais. Isso é cansaço normal, afirma o médico que atribui as queixas do seu doente à falta de uma férias bem gozadas, afinal conhece o homem desde pequeno e a sua saúde é de ferro. O homem abandona o consultório do médico com uma vitaminas e uma receita para tirar umas férias com a mulher e sem os filhos o mais rápidamente possível. 
Numa manhã como qualquer outra anuncia à sua esposa, vou à cidade tratar de uns assuntos, e sai dando um beijo na face da mulher. Dirige-se ao hospital, gabardine longa, chapéu e óculos de sol. A sua postura é a de alguém que não quer ser reconhecido. Detém-se um momento observando as indicações para as diversas consultas disponíveis, dirige-se a uma sala de espera tira uma senha e aguarda de pé. Bom dia, diz a enfermeira, qual é o teste que deseja efectuar? SIDA, ouve o homem sair da sua boca a palavra que ele mais teme. Primeiro teste positivo, segundo teste de controlo positivo. 
A enfermeira começa a enunciar todos os avanços feitos no domínio, taxas de sucesso, tipos de tratamento mas a sua mente está ocupada. Positivo, positivo, positivo, positivo, positivo... Não se lembra de regressar a casa.
Nessa mesma tarde decide finalmente abrir-se com a sua companheira de tantos anos. Não sou quem tu pensas. Não te mereço a ti nem aos nossos filhos e muito menos o amor que me dão. Durante anos fui um cobarde. Todas as noites que não dormi em casa passei-as com outros homens. Homens que não conheço, homens sujos que encontrava em bares e hoteis. Sou paneleiro, sempre o fui, desculpa. Tentei refugiar-me disso no trabalho, na igreja, nos miúdos, em ti... Mas fui fraco. E agora, além de fraco estou infectado e sujo também eu. Quero arrancar a minha pele, quero esvaziar-me deste sangue infecto, arrancar com as minhas mãos esta coisa que me consome. Mas sempre fui um reles paneleiro que se deixa seduzir pelo apelo da carne de outros homens. Um fraco, um paneleiro qualquer... Não mereço viver. Cuida de ti e dos nossos filhos. Vivi cobarde, morro como um homem. Leu a sua mulher quando o encontrou mergulhado no seu próprio sangue e uma pistola na mão.


Romanceado a partir de uma história verídica.