terça-feira, 5 de junho de 2012

Por aqui, tudo bem.

Oito meses. Não parece mas já passaram 8 meses desde que deixei Portugal. Num sentimento de "tão perto mas tão longe", parece que foi ontem que aqui cheguei mas, por outro lado sinto que já não seria capaz de trabalhar em Portugal. De facto, as condições aqui são de tal forma diferentes que já não me vejo a trabalhar em Lisboa. Na verdade, este sentimento abalroou-me quando vi um documentário na RTPi acerca da vida dos tripulantes de ambulâncias em Lisboa. A visão dos Serviços de Urgências da capital, dos quais ainda me lembro muito bem, colocou-me duas questões: Como é possível? Como foi possível? Como é possível que se trabalhe naquelas condições e, a questão que mais me impressionou, como fui eu capaz de trabalhar, sem qualidade e sem segurança, em tais organizações. Na verdade, oito meses são mais que suficientes para alguém se habituar ao conforto e à segurança. Porque, em boa verdade, trabalhar aqui à acima de tudo, confortável. Não é que seja perfeito, longe disso. Há problemas como em todo lado, há intrigas e favorecimentos, injustiças e também há erros. Mas é confortável porque só temos um trabalho, folgamos o tempo a que temos direito e, acima de tudo, o ordenado é adequado e permite uma vida sem sobressaltos. E este conforto tem este efeito bizarro em mim: o tempo que passou ainda não é suficiente para me esquecer de onde vim mas, ao mesmo tempo, essa realidade está tão esbatida que, por vezes, tem a intensidade de algo que apenas sonhei, que não vivi realmente.
De tudo o que aqui encontrei o que mais me agrada é a mistura de culturas e de nacionalidades. Diariamente trabalho com suíços e franceses, espanhóis, italianos, portugueses, romenos, gregos, iranianos, iraquianos, indianos, russos e ucranianos, polacos, alemães, canadianos, ingleses, norte-americanos. E isso é fantástico! Ainda para mais quando toda a gente se trata por "tu". De facto, o "tutoyer" está institucionalizado mas desenganem-se se pensam que é o equivalente do "tu-cá-tu-lá" que bem conhecemos. O "tu-cá-tu-lá" tuga está carregado de uma conotação de promiscuidade na relação profissional, numa espécie de "faço o que quero porque sou tu-cá-tu-lá com o chefe" enquanto que este "tutoyer" é estabelecido logo no início da relação profissional, pelo que deixa automaticamente de ser um abuso tratar o chefe por tu. Como sempre nos dirigimos a ele nesses termos, o tratamento por tu é automaticamente desmistificado e deixa de ser uma questão. A mesma coisa com os médicos. Tratamo-los por tu, de mesma maneira que eles nos tratam por tu. Chamamo-los pelo nome próprio e o "Doutor" que normalmente precede o seu nome não existe. Isso facilita, e muito, a relação e favorece a confiança e o bom ambiente de trabalho.
Uma das coisas que estranhei no início desta experiência foi o facto de TODOS os médicos que trabalham no serviço terem um telemóvel de serviço e a lista desses telefones estar afixada por todos os cantos do hospital. Mais estranho ainda para mim, foi o facto de ser perfeitamente normal os meus colegas agarrarem no telefone e ligarem ao médico para colocar uma questão ou dar uma informação. Em Portugal isso não se passa assim. Em primeiro lugar há médicos que são extremamente desagradáveis quando incomodados e depois há aqueles que nunca estão disponíveis. Além disso, normalmente dão-nos um número de um escritório onde, invarialvelmente, não está ninguém. Aqui, se quero falar com o Dr. Avec procuro o seu nome na lista e ligo-lhe. E, surpreendentemente, ele atende! E é assim não só com os nossos médicos mas também com os especialistas que convocamos como o neurologista, ortopedista, cardiologista, etc, etc, etc.
Balanço da decisão de vir para cá: faria tudo de novo!

domingo, 3 de junho de 2012

Eu, maníaco.

Há algo de realmente me perturba em certos doentes, algo que mexe comigo de uma forma quase compulsiva. Não são os odores corporais, desagradáveis em si mesmo mas perfeitamente suportáveis; também não são as feridas, mesmo as mais purulentas e nojentas; os líquidos corporais com eles posso eu bem. Não, nada disso.
O que realmente mexe comigo e me enerva para lá do racional é o facto dos doentes se enrolarem todos nos lençóis! Assim tipo casulo ou então quando o lençol se torce todo na cama quando este arrasta pelo chão porque não está direito como deve estar, está atravessado, na diagonal, do avesso. Que esteja amarfanhado no fundo da cama porque o doente está com calor ainda vá. Agora todo torcido é que não!
Na minha cabeça (e talvez só na minha) há uma certa forma de dormir e de lidar com o lençol. Não me perguntem qual é, não faço a mínima ideia. Mas lá que há, há.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A Mike Tyson da blogosfera.

Existe aqui pela blogosfera uma certa "solidariedade" entre bloggers, uma espécie de irmandade onde "tu elogias o meu blogue, eu elogio o teu" que tem um certo ar de plástico, de artificial. Dito isto...
O que eu procuro num blogue não é a qualidade dos textos, o impecável domínio da Língua Portuguesa, as improváveis mas incrivelmente certeiras metáforas ou o refinado humor. Claro que tudo isso interessa mas, ao fim de algum tempo essas características não conseguem evitar um bocejo ou dois e, inevitavelmente acabo por deixar de visitar esse blog. Há muito tempo que não adicionava um novo blog à minha lista de leitura mas hoje fi-lo.  
Como sempre nesta blogosfera, acabei por ir visitar este blog por sugestão de uma amiga de longa data desta blogosfera, a inevitável Ana C., muito embora já tivesse tropeçado nele uma ou duas vezes sem, verdade seja dita, lhe tenha prestado a devida atenção. E, um dia, a Ana manda-me uma mensagem dizendo "tens uma nova seguidora". Vou ver e deparo-me com palavras elogiosas acerca do "Cheirinho a éter...". Acho que o mínimo que se deve a alguém que nos elogia o trabalho é descobrir mais acerca da pessoa que nos elogia. E o que descobri foi algo de muito valioso. Textos simples, honestos, dolorosos, divertidos, reais de alguém com muita coragem. E, pegando na introdução que fiz a este texto, devo dizer-vos que, neste momento sigo não o blog mas a Pessoa. Alguém que não conheço pessoalmente mas que admiro pela perspectiva tão real mas, ao mesmo tempo positiva que ela consegue dar a uma situação verdadeiramente difícil.
Não posso dizer que partilho das suas emoções, que as vivo como se fosse o próprio a sentir mas entendo-a de uma forma muito particular. Na história deste blog, o blog de um enfermeiro que luta todos os turnos não só com as dores dos outros mas também com as suas próprias emoções, dificuldades e limitações, existem uns quantos textos acerca do cancro. Creio que todos são textos sombrios e frios, rudes e até crueis mas essas são as emoções que sinto (e ainda hoje o sinto) perante essa doença em particular. E não sou só eu. Ainda ontem uma médica me dizia, tendo por ponto de partida o desfecho trágico de uma doente que tinha tratado, que se algum dia fosse apanhada nessa guerra que tomaria medidas precisas e muito concretas e, digamo-lo sem rodeios, acabaria com a própria vida antes que o cancro a tomasse de assalto. É este o medo que nós, os que lutamos contra o cancro, temos.
Mas a Silvina fez-me perceber uma coisa muito importante e que mudou a minha visão e a minha maneira de cuidar os doentes com quem me encontro: não somos nós, médicos e enfermeiros e todos os outros profissionais, que lutamos contra o cancro. São os doentes! Como num combate de boxe, nós somos apenas os treinadores que os aconselham, os que lhes dão água e uma toalha, os que lhes limpam as feridas nos intervalos do combate enquanto os lutadores descansam mas sem deixar de olhar o ser adversário nos olhos. A Silvina semeou em mim, enquanto profissional da saúde, algo muito valioso. Por tudo isto, meus amigos, e não por "socialporreirismo" relativamente a alguém que me mencionou no seu blog, vos digo: vão ler estes Episódios de Radio.   
E quanto a ti Silvina... espeta-lhe uma em cheio nos queixos e arranca-lhe uma orelha à dentada!!