sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Porque a estupidez não conhece fronteiras.

Toca um dos (5 ou 6) telefones do serviço. Atendo.
- Bom dia. Gostaria de obter informações acerca da Dona Maria Abertina por favor.
- Com certeza. A Dona Albertina está bem, estável, e estamos à espera que a chamem para fazer a endoscopia.
- Quer dizer que não fizeram nada durante a noite?
E aqui, numa fracção de segundo a resposta que me passou pela cabeça foi:
"Claro que não fizemos nada minha senhora. Apesar de a D. Albertina estar com a hemoglobina nas lonas depois de sangrar pelo cú durante dois dias e chegar aqui completamente podre nós limitámo-nos a olhar para ela toda a noite, na esperança que ela se estabilizasse como por auto-regeneração ou por algum tipo de intervenção divina. Por obra do acaso ou mera sorte, a doente conseguiu subir a sua hemoglobina assim como a sua tensào arterial e agora está porreira à espera do tal exame que julga tão importante."
Felizmente ainda tinha o filtro mental activado de maneiras que acabei por responder:
"De todo minha senhora, a D.Albertina já recebeu 4 unidades de sangue que lhe permitiram resolver a sua anemia assim como vários litros de soro e um medicamento para diminuir a hemorragia gástrica por isso acho que já fizemos alguma coisa."
-Ah... então e o exame?

(Ando eu aqui a gastar o mau francês...)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Ao que parece, não teve uma infância fácil. Ela, que foi ele numa outra vida, saiu de casa num dia como os outros, na mala a tiracolo levava um acessório que lhe iria mudar o futuro. Pensou longamente onde haveria de deixar a sua declaração ao mundo e decidiu que não haveria lugar melhor que o lugar onde nunca a compreenderam. Fechou a porta, apanhou o metro.
Entrou no hospital complemtamente despercebida, tão ignorada, tão apagada, tão esquecida como se sentia por dentro. Soube que tinha escolhido bem o local para sua última consulta. Subiu ao sétimo andar, Consulta de Psiquiatria, abriu a mala, alisou a carta que deixou para o mundo, tirou a corda que comprou para aquele momento e começou a preparar-se. Naquele momento alguém reparou naquela mulher que fixava uma corda na varanda da escadaria. Logo naquele momento, em que queria passar despercebida, alguém finalmente a viu. Colocou a corda ao pescoço e subiu para o muro.
Logo chegaram todos, ao lado dela, na varanda aqueles que nunca a conseguiram entender, aqueles que nunca a viram a tentarem convencê-la a descer. Que irónico, a pedirem-lhe por favor para reconsiderar. Nunca se sentira tão certa na sua vida, nem quando era ele e muito menos depois de ser ela. Via o pânico na cara do psiquiatra, a impotência na cara de alguém que era suposto ter a resposta para tudo... Em baixo, no rés-do-chão, policia e bombeiros e mais médicos e enfermeiros prontos para a salvar. Mas porquê agora? A salvação tinha ficado para trás havia muito tempo. Pensou como era engraçada aquela situação: todos iriam vê-la morrer quando nunca ninguém a tinha visto viver.
Sorriu, saltou. Os dois psiquiatras precipitaram-se para ela mas só agarram a corda. A vida não é um filme, não existem heróis. Eles não conseguiram segurar a corda, ela não foi salva no último instante. Só uma sombra a cair alguns andares e um som seco e rápido. Um som que tanto pode ter sido a corda a estalar, a coluna dela a estilhaçar-se ou a mão do médico decepada pela corda sobre tensão.
A polícia cortou a corda, os bombeiros apanharam-na e os médicos e enfermeiros que a esperavam no solo começaram as suas manobras de reanimação. Mas, no fim, só ficou aquele som.
 
(Crónica inspirada num evento real que ocorreu no hospital há algumas semanas. Uma mulher enforcou-se realmente numa das escadarias e um psiquiatra perdeu realmente uma das mão a tentar salvá-la.)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Crónica do Sossego.

Tenho um sentimento de ambiguidade relativamente a Portugal: 15 meses (já!) depois de aqui ter chegado sinto-me ao mesmo tempo apreensivo pela situação que se vive no país natal e aliviado por ter vindo. Na verdade quando me ponho a imaginar qual seria a minha situação se tivesse ficado em Portugal, tendo por base todas as alterações e cortes que os colegas que estavam em situações semelhantes à minha, sinto um nó no estômago. Por isso, bravo a todos vós que têm a coragem de ficar!
Por isso custa-me por vezes a crer na vida que hoje tenho quando comparado àquilo que tinha em Portugal. Na verdade é um sentimento que me invade frequentemente e que até já comentei com alguns colegas. Hoje tenho um trabalho apenas e não dois, apenas um salário que me garante uma qualidade de vida como não me lembro de alguma vez ter tido em Portugal. Trabalho num serviço de topo a nível nacional com condições materiais, físicas e humanas que em Portugal são apenas um sonho louco, mesmo nas CUF's, nos Hospitais da Luz e outros hospitais e clínicas privadas consideradas "de excelência". Ao final de um ano, deram-me a possibilidade de frequentar uma pós-graduação de Especialidade sem custos para mim e com reais perspectivas de evolução na carreira após a conclusão do curso. E agora eis que sou contratado como Instrutor de Primeiros Socorros e Suporte Básico de Vida numa empresa que dá formação na área da saúde! Tudo isto sem cunhas, sem padrinhos, sem empurrões. Apenas e só com a força do meu currículo, da minha experiência, da minha pessoa. E isso é tão refrescante para quem estava habituado aos culturais "compadrios" portugueses.
Enfim, perdoem-me este texto, pode parecer um pouco ofensivo para quem está um pouco "entalado" e não tem outra saída se não aguentar (não são palavras minhas, são do Ulrich!) mas quando olho para trás, apesar da tristeza por ver o rumo que toma o meu país, sinto-me muito mas muito aliviado!

PS: para quem tiver curiosidade acerca do meu actual local de trabalho cá vai o link para o site internet. Todos as pessoas que aparecem nas fotos são profissionais reais e os meus novos colegas! Eu não apareço no site mas se virem a reportagem acerca do serviço que está la no site (Temps Present) aí sim...