domingo, 25 de março de 2012

O Depois.

A Carla Isabel coloca, e muito bem, a seguinte questão na sequência deste texto: "pois..esse acabou menos bem...olha uma pergunta:e como é o vosso depois???depois de perceberem que acabou?" A resposta mais simples, a mais evidente é a seguinte: fácil. Tiram-se os tubos e os catéteres, limpa-se o defunto, preenchem-se meia-dúzia de papéis e siga para a morgue. Mas eu não gosto de descrições simples...
Para mim (não sei como se passa para os outros) o depois é sobretudo tristeza. Não a tristeza obliterante, incapacitante da perda de alguém querido mas mais uma tristeza observada. Observada no corpo. E não consigo deixar de me perguntar e de me admirar com o contraste Vida / Morte. Como é possível que a simples paragem dos sistemas corporais seja tão evidente, tão marcante. 
O que me enche de tristeza é, primeiro que tudo o baço dos olhos mortos quando ainda pouco antes havia brilho, havia vida. O que se perdeu? Não pode ter sido só o facto que o sangue parou de circular. O contraste do vermelho (precisamente) vivo da língua com aquele magenta mortiço que vem depois. As pontas dos dedos cinzentas. A boca aberta como se presa num grito que nunca chegou a sair. O que foi que se perdeu? Não pode ter sido só sangue e oxigénio, sinapses e estímulos nervosos. Não.
Todas as mortes a que assisto me fazem pensar nisto. Não deixo nunca de parar um momento a olhar para a pessoa que se foi. Por incrível que pareça, é a contemplar a Morte que tento perceber o que é, na verdade, a Vida.

sábado, 24 de março de 2012

Se Camões fosse vivo arrancava o outro olho.

Os estereotipos vêm, todos, de algum lado, de alguma origem. Quando ouço piadas acerca dos Portugueses revejo naqueles relatos anedóticos exagerados muito daquilo que é "ser tuga". Não "ser Português" mas sim "tuga" com tudo aquilo que é brejeiro, foleiro, tascoso, pimba. Entrar num "centro português" aqui na Suíça é imergir numa tasca do interior profundo com todos os clichés que possam imaginar desde o Zé Povinha até ás bandeiras dos principais clubes de futebol. O que só acentuado pelo facto que, apesar de ser proibido, ainda se fuma (muito) lá dentro enquanto se batem umas cartas ou se pousam uns dominós. E apelidar isso de "cultura Portuguesa" enerva-me porque não me revejo nessa cultura. Mas enfim, gostos não se discutem (não mesmo?).
Contudo, há uma coisinha. coisa pouca aliás que poderíamos conservar, cuidar. acarinhar e manter orgulhosamente imaculado e que só a nós nos pertence: a Língua Portuguesa.  Dizia-me uma portuguesa, empregada da limpeza, no outro dia muito admirada "ahhh nem se percebe que é português quando fala francês e quando fala português ainda não se nota que é imigrante". Ainda, ainda? Portuguêsmente falando: não me fodam. Que sim, que falamos francês durante o dia todo, é verdade. Que possamos num raciocínio imediato não encontrar a palavra portuguesa para este ou aquele objecto que até nem usamos todos os dias, tudo bem. Agora que se fale constantemente em françuguês é negligência linguística! E depois, outra coisa para a qual não encontro qualquer explicação nem tem pouco desculpa e que já considero crime, é o facto de muitos dos filhos dos nossos compatriotas NEM SEQUER FALAM PORTUGUÊS!!! A sério, um amiguinho do meu filho, tuga, não fala português e percebe muito pouco. Numa casa onde ambos os progenitores são portugueses? Alguém me explica isto?
Faço aqui um juramento solene perante todos os meus leitores: juro continuar a cultivar a a acarinhar a Língua Portuguesa e a escrever e ler em Português. Juro que farei tudo o que estiver ao meu alcance para que os meus filhos falem português o mais correctamente possível. E juro que tento defender e mudar um pouco a imagem que os Suíços têm do nosso povo. 
No último texto publicado a DeepGirl (que também está por terras helvéticas) escreveu o comentário seguinte: Teria ficado melhor se tivesses escrito "C'est oú, c'est oú, putain?!". Lol. Provavelmente até disse algo muito semelhante mas faço questão de descrever os diálogos em português. Para quem chega de novo ao blog pode até parecer que ainda estou em Portugal mas, na verdade, estar aqui ou em Lisboa é a mesmíssima coisa no que diz respeito ao "Cheirinho a Éter...", ao seu objectivo.
Obrigado e bom dia.

domingo, 18 de março de 2012

A noite ia calma.

O bom de trabalhar na Urgências é que nem sempre estamos no rodopio dos doentes que chegam. Há sempre um recanto mais sossegado que funciona um bocado como um serviço de internamento normal, o SO (Serviço de Observação). Aqui guardamos os pacientes estáveis que esperam vaga para ser internados num serviço "a sério" ou aqueles que precisam de umas horas de vigilância antes de regressarem a casa. A noite hoje esteve calma. Os meus doentes sem queixas, as linhas nos monitores bem rítmicas e constantes, como se pretende, o serviço à meia-luz, um alarme aqui e ali nos doentes da box ao lado mas nada de alarmante. O ambiente foi bom, os colegas bem animados. Encomendámos comida tailandesa que comemos era quase meia-noite e um dos colegas ficou com cólicas e tivemos que o "internar" numas das camas livres! As horas passaram indolentes, com pausas para preencher os gráficos da evolução dos pacientes que lá iam interrompendo as conversas sobre tudo o que vai bem e não tão bem aqui no serviço e no mundo em geral.
Toca o alarme de reanimação, saltamos das cadeiras como se tivéssemos sido ejectados do cockpit. "É onde, é onde?" pergunto apesar de o local estar bem identificado com uma luz encarnada. Contornamos a esquina e lá está a colega a fazer massagem cardíaca... Tomo o seu lugar, uma outra colega chega com a prancha de massagem cardíaca, e logo um outro colega com o carro de reanimação. Segundos depois o quarto foi invadido por outros enfermeiros e os médicos da urgência. É que o alarme soa em toda a urgência... A azáfama do costume mas desta vez bem organizada, tudo bem sincronizado. Colocamos o desfibrilhador... choque... nada. Retomar massagem. Material de intubação preparado, o médico falha a intubação uma, duas, três vezes. A coisa está feia. Adrenalina administrada. 20 minutos de massagem cardíaca. "Se todos estiverem de acordo paramos as manobras...". Todos estamos de acordo.
Doem-me os braços de tanto massajar e um colega diz-me: "massajas bem pá!".

quinta-feira, 15 de março de 2012

Hardcore.

Trabalhar em Urgência não é para todos. Ainda hoje encontrei um colega que acaba de deixar o serviço que desabafava "Ao fim de ano e meio já não conseguia ir trabalhar com prazer". E ontem foi na verdade um desses dias bem difíceis...
Para começar recebemos 3 crianças deste acidente indescritível . E isto, do ponto de vista emocional foi muito duro para todos ainda por cima sabendo de tudo o que se tinha passado... Depois recebemos acidentados, enfartes, paragens cardíacas, sei lá! Num determinado momento tínhamos TODA a equipa de enfermagem dentro das salas de reanimação com 4 pacientes a serem tratados ao mesmo tempo!! Juro que nem este post aqui faz justiça ao granel ( isso mesmo, granel, confusão, caos) que se instalou, ainda por cima com o stress de termos de fazer sair pelo menos um dos doentes porque tínhamos um quinto paciente a chegar de heli. E é este tipo de pressão, esta adrenalina de fazer as coisa depressa e o melhor possível que mata a relação da maioria dos enfermeiros que chega ás urgências. A culpa é das séries de médicos, como ER, Anatomia de Grey e outras que tal que passam uma imagem muito romântica das coisas. Depois na realidade as coisas são, normalmente, muito duras e cruas.
Mas dizia eu, trabalhar nisto não é para todos os estados de alma... mas, depois de um dia de LOUCOS com imenso trabalho quando chego a casa arrasado fisicamente e começo a contar o meu dia cheio de casos "engraçados" e "porreiros" de doentes politraumatizados, drenagens torácicas, enormes feridas sangrantes e doenças multifactoriais em doentes descompensados, a minha mulher olha para mim de esguelha e diz: "Engraçados? És louco... estou enjoada só com a descrição!" E nesse momento eu tenho a certeza que, na verdade não há nenhum outro serviço em que eu possa tirar tanto como das Urgências!

quinta-feira, 1 de março de 2012