De volta ao trabalho em 2010. Reencontro uma velha colega de outros campos de batalha e, inevitavelmente, pergunto como estão as coisas no trabalho, os antigos colegas. "Same old, same old" tudo na mesma, muito trabalho, a desorganização de que ainda me lembro, os colegas desse tempo foram saindo, muita gente nova sem espírito de equipa, enfim. A novidade está na reestruturação do espaço. aproveitaram um dos internamentos para ser o Serviço de Observação da Urgência (que não passa de uma espécie de purgatório onde os doentes aguardam que haja uma vaga numa enfermaria qualquer) abrindo assim espaço no Serviço de Urgência. Bem, em urgência em Portugal "mais espaço" significa normalmente "mais macas". O espaço que era anteriormente ocupado pelo SO é agora aquilo que nós chamamos "Box". Doente que, não se esperando que sejam internados, têm de esperar por algum exame ou consulta ou cirurgia ou, simplesmente estão em observação para que se decida o que fazer.
Até aqui tudo bem, parece-me uma clara melhoria das condições dos doentes até que pergunto o que foi feito da antiga Unidade de Cuidados Diferenciados (na verdade trata-se de uma Unidade de Cuidados Intensivos que funcionava na Urgência mas que, por razões logísticas não se podia chamar "cuidados intensivos"). Essa passou também para o novo piso da Urgência, agora esse espaço é utilizado para colocar os "casos sociais". Estes "casos" são na verdade pessoas, idosos na maioria, que ninguém quer receber, que a família abandonou, que os lares não querem manter porque dão trabalho e prejuízo, que os filhos e/ou netos deixam na Urgência e quando queremos dar-lhes alta o número de telefone fornecido ou não está atribuído ou nunca é atendido. O espaço de que falo não tem mais que 30 m2 e recebia, na sua antiga vida, três camas para doentes críticos. Quando perguntei qual a lotação máxima neste momento a minha colega respondeu: "Os que couberem."
Os que couberem? Conhecendo aquela realidade como conheço não me foi difícil imaginar o cenário: enquanto houver espaço enfiam-se macas lá para dentro. Para se chegar ao doente que está encostado à parede tem que se desviar as três ou quatro macas que estão juntas, numa espécie de estacionamentos em 3ª ou 4ª fila. Estes doentes são "não prioritários", não precisam de "cuidados essenciais", são os últimos a ser vistos, os últimos a ser cuidados. Considerando que a urgência nunca para. estes doentes recebem atenção quando o fluxo de doentes "a sério" acalma. São vistos nos intervalos da chuva. Este espaço fica bem no fundo do serviço, última porta à direita. Baptizaram-no de "A Arrecadação".
E "A Arrecadação" bem pode ser uma metáfora para caracterizar a sociedade moderna, aquela à qual pertencemos, aquela que ajudamos a construir. Que sociedade somos nós, que permitimos que os nossos velhos sejam "arrecadados" desta maneira? Gostaria de poder melhor descrever aquilo que me refiro mas não é possível. É uma sala com 30 m2 atulhada com macas onde pessoas velhas estão deitadas e onde é impossível chegar de uma parede à outra mantendo todas as macas lá dentro. É uma sala cheia de gente deitada em macas mas também cheia de murmúrios e gemidos, de gritos de dor e desespero. E de solidão. Isto é o fim da linha para muitos dos nossos.
Para mim, uma vida de sucesso é aquela que termina junto dos nossos. Dos nossos filhos e netos, genros, noras, amigos. Não sei como definir uma vida que termina na "Arrecadação".
4 comentários:
Eu vi uma arrecadação dessas no hospital da Guarda, quando a minha avó lá esteve antes de falecer...
e vi muitos casos assim, de pessoas lá abandonadas, sem contactos válidos de familiares ou mesmo amigos..
é triste e uma dor profunda ver como se tratam as pessoas idosas em muitos casos... como a família os abandona...
uma dor de alma de pensar sequer em abandonar algum membro da minha família em condições assim...
beijocas e bom ano Miguel
Tratar mal os velhos vai ter de mudar quando estes passarem a ser uma parte enorme da população... E falta pouco para isso.
"que os filhos e/ou netos deixam na Urgência e quando queremos dar-lhes alta o número de telefone fornecido ou não está atribuído ou nunca é atendido."
Cruz credo.
Até fiquei arrepiada!!! Muito bem escrito, com a profundidade necessária.
De facto a nossa sociedade trata muito mal os seus velhos, esquecendo-se ocmpletamente que "amanhã" seremos nós que lá estaremos, enfim...
Beijos grandes,
Márcia
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