terça-feira, 22 de novembro de 2011

Lost in Translation

Desde o início que sabia que a língua (neste caso o Francês) ia ser um desafio vital nesta nova aventura. Na verdade já falo francês há muitos anos, o suficiente para manter uma conversa informal de uma forma compreensível e estruturada. Contudo o vocabulário técnico seria sempre um desafio. Mas não estava preparado para as reais dificuldades... Na verdade o vocabulário técnico é muito parecido com o português e quem quer que seja que domine o francês na sua vertente mais geral consegue facilmente dominar o vocabulário técnico. Já falar com os doentes... isso é outra conversa! Não é assim tão evidente receber um doente nas Urgências e descodificar o seu discurso. O que em português é automático passa a ser penoso em francês!
Para já o tratamento formal presume tempos verbais mais complexos para além do presente, passado e futuro. E depois há montes de expressões idiomáticas que não são conhecidas de um não-francófono. Por incrível que pareça dei por mim a pensar e a pesquisar na net como se dizia alguma palavras aparentemente simples como "fezes", "bexiga" e "gémeo" (o músculo), e a encravar no discurso ao descobrir subitamente que não sabia como perguntar ao doente "Então? Os intestinos funcionam bem?". E garanto-vos que tenho recebido montes de olhares intrigados de doentes ou familiares que visivelmente não perceberam um boi do que eu lhes disse!! Por outro lado a maioria dos  doentes utiliza expressões mais coloquiais para se exprimirem. O equivalente em francês a "arriar o calhau", "picha", mijar", "cagar" e coisas dentro desta linha de linguagem! Descobri da forma mais embaraçosa que os dedos têm nomes diferentes dependendo se forem os dedos das mão ou os dos pés! Depois há a questão da entoação. O francês é uma língua muito musical e com pequenas variações nas entoações das palavras e por vezes apercebo-me que os pacientes tendem a repetir algumas palavras que digo mas com entoações ligeiramente diferentes. Os primeiros 15 dias de trabalho foram difíceis na medida em que estava ainda a tentar adequar a minha forma de me expressar em francês.
Eis senão quando recebo um jovem agressivo e numa crise psiquiátrica... a tourada do costume, gritos, montes de gente a segurar o rapaz e finalmente as imobilizações de mãos e pés. Claro que depois de preso o jovem passou a berrar a plenos pulmões "AJUDA, SOCORRO, POLÍCIA" para além de, evidentemente "CABRÕES, FILHOS DA PUTA, CORNUDOS!". Sendo o meu doente, lá o instalei na sua box de urgência (uma espécie de quarto mas sem portas) e tentei acalmá-lo. As coisas até estavam a correr bem até ao momento em que disse uma palavra qualquer que o tipo não percebeu... "Essa palavra nem sequer existe." afirmou o tipo com desdém. E eu reformulei a frase mas já era tarde. Percebendo o meu erro ele começou "Não percebo nada do que dizes... Essa palavra não existe... não percebo nada..." até que finalmente "SOCORRO, SOCORRO, NÃO PERCEBO UM CARALHO DO QUE ESTE GAJO DIZ!! NÃO PERCEBO ESTE TIPO" em altos berros...

Na verdade é uma pena que não haja buracos num serviço de urgência de um país tão evoluído.


4 comentários:

joao disse...

miguel, jantar no sabado em lausanne com enfermeiros tugas, como é vens?

Carla Santos Alves disse...

...ai...nao deve ser f´cil , não!Mas assim como assim, esses era maluco....

Naná disse...

É um incrível mundo novo!

Ana C. disse...

AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA
O hospital inteiro já ficou a saber que andas lost in translation.