domingo, 28 de setembro de 2014

A história do rapaz com o olhar perdido.

A ambulância chega como sempre, na fila com as outras ambulâncias que trazem dores e lamentos no banco de trás. Na maca um rapaz magro, com ar frágil e olhar perdido. Chagando a sua vez na triagem o paramédico conta à enfermeira de serviço como o rapaz fora encontrado à porta do hospital sentado no passeio, confuso e perdido. É um conhecido esquizofrénico, deve estar numa crise ou preso nas suas alucinações. Ok, envia-se o rapaz para as Urgências, o sector dos doentes agudos, há testes a fazer, exames a realizar. 
Recebo o rapaz numa das boxes da urgência. O rapaz está confuso, discurso incoerente, olhar perdido, expressão severa. O meu primeiro reflexo, como com a maioria dos doentes, é retirar-lhes a roupa e vestir-lhes a blusa do hospital. Serve para que o doente esteja mais acessível ao exame clínico e aos exames que devemos fazer. Ao tirar os sapatos percebo que o rapaz tem um esgar de dor. Ao ver as meias há algo que não percebo bem. Há uma clara deformação daqueles pés. Retiro as meias, os pés estão num ângulo estranho, as tibias saem por onde os calcanhares deveriam estar.
Corremos para a reanimação, chegam os anestesistas, os ortopedistas e o chefe do bloco. O seu coração bate rápido, a sua tensão arterial está baixa, mau sinal. O chefe do bloco berra, não é possível que este doente tenha esperado tanto tempo para ser visto. Picamos veias, tiramos sangue, damos soro, o rapaz parte para o bloco operatório tão depressa como chegou a mim. 
A história é estranha, os paramédicos falharam a avaliação, na tiragem ninguém se apercebeu e eu, sinceramente, não teria dado conta se no o tivesse despido, como a todos os pacientes. O que se passou?
Abrimos o seu dossier informático e vemos que está internado em dermatologia. Ligamos e ficamos surpreendidos quando percebemos que a enfermeira de serviço não tinha dado pela sua falta. A linha fica aberta enquanto ela vai ao seu quarto, o silencio do telefone em alta-voz a encher a sala. Regressa, a janela está escancarada, ele saltou! O resto só podemos imaginar: ele saltou e caiu de pé, a dor dos ossos a perfurarem-lhe a pele o os músculos deixou-o confuso e perdido, o diagnóstico de esquizofrenia enganou-nos a todos.
Encontrei-o ontem, de novo nas urgências. As lesões foram um pouco além do que as pernas partidas mas vá lá, consegue andar. Teve sorte, tivemos todos sorte.

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