sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O Colchão Vazio.

"Não era suposto o homem morrer..." disse-me a Dra. Dulce enquanto se sentava numa cadeira junto a mim. "Enfº Miguel, não era suposto o senhor morrer..." repetiu, com o desânimo estampado na face. A Dra. Dulce é uma médica atenta e atenciosa, próxima dos seus doentes, preocupada com as suas maleitas. "Mas Drª... por muito que façamos não podemos ainda evitar a morte. Ainda não somos deuses...". A resposta não pareceu aliviá-la e o silêncio instalou-se.
Eu próprio fiquei surpreendido quando, hoje de manhã ao chegar ao serviço, vi o colchão sem lençóis, dobrado para cima da cabeceira. É sempre um sinal da Morte. Não soubesse eu que são as auxiliares que o fazem para desinfectar a cama e diria que a Morte leva com ela os lençóis e dobra o colchão vazio.
"Não era suposto o homem morrer...". A frase ficou a ecoar-me na mente o resto do dia. Qual é afinal a nossa função? Fizemos tudo bem com este doente (o que nem sempre acontece), medicámos na altura certa, pedimos os exames em tempo útil, discutimos as melhores opções. E ela melhorou. Passou de fraco e sem apetite para um corredor de meio-fundo que calcorreava o corredor para trás e para a frente, cumprimentando todos à sua passagem. Ele estava bem. Ontem, à hora do almoço, tocou a campainha e encontrei-o pálido, suado, com dor no peito. A tensão um pouco alta, monitorização aparentemente normal. Foi para o Serviço de Observação apenas por precaução. Desceu a barafustar que queria levar o robe e disse-me um "até já" antes de entrar no elevador. "Não era suposto este homem morrer..." disse ela.
Porque há mortes que custam a engolir. Uns encaram-nas como um grande sapo divino que somos forçados a engolir por uma força que nos transcende, outros encaram-nas como um sinal da nossa humanidade, da nossa humildade perante o jogo da Vida contra a Morte. Os primeiros são arrogantes, recebem essa morte como um ataque pessoal de Deus (ou de Alá, ou de Maomé, ou de Buda, seja qual deles for.) e encaram o próximo desafio como uma final que não podem perder. Só que, numa final, a única coisa que sai maltratada é a relva do campo. E, neste caso, o campo é o doente. Os segundos, nos quais humildemente me incluo, sentem essa morte como um momento para reflectir, para respirar e para partir para o doente seguinte.
"Não era suposto este homem morrer...". Obrigado, Dra. Dulce por exprimir o que eu estava a sentir e por me demonstrar que há profissionais que sentem as perdas dessa forma.

7 comentários:

Bypassone disse...

Parece que nem todos os médicos são como aquele do balão......

Miss Complicações disse...

Quase tudo na vida se pode contornar... a morte não! É preciso
ter estomago para lidar com ela. Ainda bem que há gente com coragem...

Gaya disse...

Admiro muito os profissionais de saúde como tu... é preciso ser muito forte para lidar todos os dias com tudo o que vocês lidam, desde pessoas irritadas e mal-criadas a partidas indesejadas!!

Apenas agradeço imenso o facto de continuarem a ser bons profissionais e a darem o vosso melhor para que tudo corra bem!! :D

Daniel Rodrigues disse...

Muito bom este testemunho.
E força aí na luta, amanhã é mais um dia!
Cumps.

Ana. disse...

O incontrolável assusta...
:|

A do giz disse...

Infeliezmente acontece =/
Mas o mais importante é sentir que fizemos tudo o que estava ao nosso alcançe.

Tens um selinho no meu blog =D
(outra vez =P)

Mulher a 1000/h disse...

Pesado, Sentido... mas reconfortante saber que há vontade em nos fazer viver, mesmo contra os desígnios da vida, por trás dos "monstros" com bata branca!