quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Face da Morte.

Ontem fiz um penso a um senhor que me recordou algumas histórias menos felizes do meu trabalho. Menos felizes para os doentes. Trabalhar com doentes é um terreno fértil em histórias infelizes, sofridas, angustiantes, dolorosas. E nenhum outro serviço tem mais concentração destas histórias por doente que o serviço de Oncologia.
O cancro é, por definição, a doença mais filha da puta que alguém criou. Não discrimina sexo, raça, idade ou órgão do corpo humano. É sádico e narcisista porque, no inicio tratam-se apenas de algumas células que se revoltam contra o resto do corpo e depois trata de cavalgar em conquista de tudo o que encontrar no seu caminho. É insidioso, só se revelando quando já está prestes a tomar o poder e silencioso na sua marcha. Mina caminhos alternativos enviando uma pequena parte das suas tropas para terrenos longe da sua origem, metastisa-se. E só mostra a sua verdadeira face quando é impossível de ser combatido. E que face horrenda é essa.
Ontem recebi um senhor na urgência. Muito embora a idade inscrita na ficha fosse 42 anos, a sua aparência indicava o dobro disso. Muito magro, sem forças, a pele amarelada, os dedos afilados. Se dúvidas não tinha sobre que tipo de doença afectava aquele homem, mais certo estive quando ele se aproximou e eu fui envolvido pelo odor que já antecipava. Podre. Estava perante um campo de batalha. E o cancro saiu vitorioso. Será apenas uma questão de tempo. Restava-me descobrir onde ele estava e destapar-lhe a face, encará-lo. O homem baixou as calças e mostrou-me: no pénis.
Por mais que veja e me depare com o cancro julgo que nunca serei capaz de o encarar indiferente. As suas mil faces são todas terríveis e inesquecíveis. Neste caso falar de um pénis é um eufemismo. Não havia pénis. Apenas um amontoado de tecidos mortos, podres, duros. Uma entidade que sabemos ser estranha ao corpo mas que a ele se agarra e não mais larga. Neste caso, uma espécie de couve-flor putrefacta. E cada vez que lhe tocava e o sentia, enquanto limpava, cortava, arrancava, o meu braço tremia. Um arrepio percorria o meu braço desde os dedos que tocavam o invasor até ao ombro. Como se ele sentisse terreno fértil para crescer. Como se ele sentisse. E o cheiro cada vez mais intenso.
Encontrei um doente com um cancro no esófago internado numa enfermaria onde trabalhei. O cancro tinha fechado o caminho até ao estômago, o doente era alimentado pelas veias. A mesma magreza (aqui extrema), a mesma pele amarelada, os mesmos olhos cansados. Aqui a face do vilão estava escondida mas não oculta. Outra vez o cheiro. Cada vez que o doente tentava verbalizar algo, um indescritível cheiro a podre invadia o quarto. A fragilidade do doente exigia que estivessemos muito próximos para tentar entender os seus pedidos mas aquele cheiro afastava-nos, repudiava-nos violentamente. Era como se o cancro reclamasse para si aquele corpo e nos afastasse á pancada. Lamento não ter percebido o doente, lamento não o ter olhado nos olhos quando ele tentava falar-me, lamento não ter sido capaz de vencer as minhas entranhas que se revolviam ao sentir aquele cheiro. Tentei aproximar-me o mais possível mas isso não era suficiente. Até que, um dia, o doente não falou. Inspirou fundo e vomitou. O inenarrável odor que invadiu o quarto fez-me fechar os olho, suster a respiração. As lágrimas vertiam como se tivesse sido atingido com gás pimenta. Quando finalmente recuperei, o doente descansava. Para sempre. O cancro venceu mais uma vez.

18 comentários:

Unknown disse...

Que horror, que histórias as tuas. É o lado duro da vida. A minha tia faleceu de cancro o ano passado. E estava agarrada à vida com uma enorme vontade de viver, ai se estava!

Poetic Girl disse...

Semana passada perdi uma prima de 30 anos para essa doença. Não somos mesmo nada, não podemos nada com a sua força que nos consome por dentro, até nos destruir. Imagino que para voçês que trabalham com esta doença lado a lado, seja uma batalha, diária, e que raramente se deve sair vencedor não é? um beijinho bela

Unknown disse...

Admiro a tua coragem, não só pela profissão que tens, mas pela clareza dos teus relatos, que me arrepiaram tanto, que quase senti o cheiro.
Um beijo.

Filipa disse...

este texto tocou particularmente, primeiro porque nunca li nada que especificasse o lado tecnico ( punhamos assim as coisas) de um cancro, visto do lado de quem o entende... eu vi essa magreza também, os anos correrem na pessoa en fraçoes de dias, vi o que nunca esperei ver... mas felizmente nao tive a sorte de a ver morrer... denao sentir o cheiro... porque ai nao seria tao corajosa ao enfrentar essa dor, mais de quem amamos.

é duro, é uma doença horrivel.-

obrigada pelo teu ponto de vista.

foi bom ler. e conhecer


beijinho

M.

Mulher a 1000/h disse...

FILHA DA PUTA do Cancro, já me levou gente muito amada e a tua descrição foi sentida deste lado... exactamente como a descreves! Admiro a tua coragem e o teu trabalho e adoro ler-te e saber que a face por trás da bata e o coração e tudo o resto também sente e muito o mesmo que nós! Força Enf. Miguel!

S* disse...

É uma doença que me assusta demasiado... porque surge sem razão, sem motivo, sem que a culpa seja da pessoa. E mata, mata tão dolorosamente que me custa sequer imaginar.

Melissa disse...

Hmmm. Comento outro dia. Mas sim, é isso mesmo.

Guilherme de Carmo disse...

muito bom o teu post! e é interessante ver os comentarios de pessoas que penso não serem da area da saude. Abraço e continua com as grandes reflexoes

mãe pimpolha disse...

Meu Deus, como te entendo.
Beijinhos

Nuvem disse...

Adoro os teus textos, a crueza com que expões o outro lado das situações.
Já perdi avós para o cancro, felizmente a minha madrinha já venceu 2 batalhas contra ele (mas quantas mais se seguirão até perder...), e vejo os efeitos em alguns amigos que partiram..
é mesmo uma doença filha da puta!!!

Ana C. disse...

A morte tem esse lado puramente físico, feio, negro. Um lado que os profissionais de saúde encaram diáriamente. Por muito que se tente endeusar a coisa, a realidade é esta dura e crua.
E o cancro é sim senhor a doença mais filha da puta de todas, mas há quem a vença e aí temos o outro lado da moeda...

Anónimo disse...

Costumo acompanhar o blog e com frequ~encia, mesmo quando relata cenas hospitalares pela qualidade da escrita arranca-me um sorriso.
Mas no caso deste acima (talvez pela crueza das imagens) fiquei em choque. Não se consegue perceber pelo menos à primeira leitura que o asco é pela doença não pelo doente. O que senti quando li foi o asco pelo doente. O que não é agradável. Conheço situações de outras doenças em que os cheiros são também nauseabundos e percebo do que fala o Miguel...mas imagine um doente a ler o que escreveu...Imaginou? (1, 2, 3) Imaginou???? e...
Hoje só isto.

Maria disse...

Ainda ha um mes perdi um primo de 22 anos com esta doença. Nem um ano conseguiu viver... Custa tanto. Que revolta..!

bjnho

Sahaisis disse...

nunca me afastou o cheiro..mas nunca nada me feriu tanto como o cancro fere, todos os dias do meu trabalho...para mim que trabalho em cirurgia oncológica sinto que te entendo perfeitamente..o cheiro do cancro é daquelas coisas que nunca se esquece...

rakel oliveira disse...

olá e mesmo verdade o cheiro e horrivel e so quem passa pois eu perdi o meu pai o ano passado com cancro galopante no pancreas durou 2 meses da descoberta ate a morte e passado 4 meses perco um tio e uma prima tb com cancros no esofago e figado podes crer e mesmo uma doença filha da puta
bjs adorei o teu blog

Precis Almana disse...

Um destes dias ouvi falar desse cheiro. Nunca o senti e este verão assisti à morte de uma pessoa com cancro. Talvez não estivesse tão avançado, não sei...
Percebi perfeitamente que falavas do cheiro do cancro, não do das pessoas - que o têm por causa da doença. E senti que demonstravas a tua impotência perante a doença e que lamentavas ser talvez a única coisa que não suportas nessa tua profissão que sabes que admiro e respeito.

Miss Complicações disse...

Não é fácil lidar com a doença e muito menos comn aquelas que se manifestam e forma cruel. Senti esse cheiro na fase terminal da minha avó. Só pedia que a levassem. Que terminasse a dor. Não é fácil e é preciso amar muito uma pessoa e ter um forte estomago para encarar esta situação. É bem mais fácil abandonar essas pessoas nos hospitais. A minha avó morreu em casa, mas morreu rodeada de amor.

Filó disse...

O asco que se sente nunca é pelo doente que sofre de cancro.
Doente e não utente,estas pessoas são mesmo doentes.
E é com eles que todos osdias aprendemos lições de vida e de morte.
O asco sentido não é só pelos odores ( aos quais nos vamos habituando ao longo dos anos)mas pelas lutas perdidas e pela impotência sentida pelos profissionais quando o Cancro ganha a luta tão dolorosa e prolongada.
Trabalhar com estes doentes é aprender a viver um dia de cada vez e volorizar as pequenas coisas que a vida nos dá.
Infelizmente mtos de nós ainda temos mto para aprender.
Bem-hajas amigo pela partilha.
Filó