terça-feira, 30 de março de 2010

Taquicárdia.

Estava tudo calmo no serviço. Estou sozinho por causa da greve e, também por causa dela não há muita gente a vir. Preparava-me para fazer um pequeno curativo numa bebé quando ouço um dos médicos:
"-MIGUEL, MIGUEL! Temos um miúdo que ingeriu uma caixa de valium!!"
O rapaz terá uns 7 anos e dormita, choramingando, no colo da mãe que se desfaz num pranto.
O meu coração dispara e, com ele os meus movimentos apressam-se. Portas e gavetas abrem e fecham com estrondo enquanto reúno o material que vou precisar. Sinto a minha face tensa e não falo. Concentro-me no rapaz e na minha bancada de trabalho. Uma sonda nasogástrica já está colocada, a lavagem gástrica já está. O puto vomita. Ainda bem. Preparo o carvão que vai impedir que o estômago absorva ainda mais do medicamento e penso: preciso de uma veia. As auxiliares aparecem e peço o material para picar o rapaz. Um catéter, compressas com álcool, adesivo, um balão de soro e o sistema. A mãe cede ao stress e afasta-se. Apercebo-me que o miúdo está cada vez mais sonolento.
Tento picar uma veia. Ele sente a dor e afasta-se. Perdi a veia, rebentou. A mãe descarrega em mim a ansiedade. "ACALME-SE!" grito-lhe, e penso que talvez tenha exagerado no tom mas a situação é urgente. Ela acalma-se e volta ao choro compulsivo. Uma auxiliar agarra firmemente no braço do menino. Pico outra vez e ele foge. Calma. Está feito! Adesivo, soro a correr, o rapaz vai para a pediatria. Respiro. Passaram-se talvez uma dezena de minutos.
Há hora que vos escrevo tudo acalmou. Revejo a cena e recordo tudo. A cara do rapaz e da mãe, os movimentos das minhas mãos, as características do vómito, o cheiro, a expressão de desconforto do menino quando sentiu um tubo a entrar pelo nariz, a veia antes de a picar. Revejo agora tudo em câmara lenta, como se de um filme se tratasse. Na verdade, a adrenalina faz-nos captar tão mais informação em situações de stress. O filme acabou mas o meu coração ainda bate acelerado. É por isto que adoro trabalhar em urgência.

11 comentários:

S* disse...

Numa palavra: enervante.

José Matos disse...

Bem... que stress!

E para acalmares os leitores, podes-nos dizer se tudo acabou em bem com o pequeno?

Miguel disse...

José, ele foi para a Pediatria. Nada indica que algo de mal possa ocorrer!

Raquel disse...

E é (também) por tudo isso, que espero um dia trabalhar em Urgência... :)

Acho que devia apostar mais em narrar as suas experiências... smepre que assim ache pertinente claro :).

Anónimo disse...

"Stress" escreve-se "Stresse" ou então se preferir "stress" tem que escrever em itálico...

Abraço

Suspiro disse...

Quase chorei ao ler este post... Só porque eu já estive no lugar desse menino, e quando gritei por me estarem a por a sonda ouvi de alguém: porque é que tas a gritar? Só estás aqui porque queres! Nunca me esqueci dessas palavras, nem nunca me vou esquecer... Calma que agora sou uma pessoas normal... ;) Invejo essa tua sensibilidade para lidar com estes assuntos!

joao disse...

Flumazenil pra dentro!!! antagonista das benzodiazepinas ;)

bom relato!

RC disse...

adorei o relato. obrigada por estarem sempre lá para quem precisa :)

sara disse...

concordo com a raquel... devia expor mais experiencias que vai tendo ao longo da sua profissao...so assim conseguimos perceber o lado de la...o lado do enfermeiro...o lado humano da 'coisa'.

Isto é CUIDAR, isto e enfermagem. Mtas vezes o enfermeiro e visto como uma maquina de fazer curativos, colocar cenas estranhas para a veias, dar injecçoes...blablabla...
e entao?
sera q ser enfermeiro é so isso?
claro que nao...enfermeiro e mto mais q isso. O enfermeiro vive mtas vezes o problema do doente...ele sente a propria dor...ele sente tbem uma dor psicologica. e o assunto nunca acaba ali. esta sua experiencia relata isso mesmo. Existiu algo que o marcou, e por isso mais tarde recordou tudo em 'camara lenta' mais uma vez. existiu ali sentimento...e enfermagem e mesmo isso - CUIDAR - se é que percebem o verdadeiro sentido da palavra...

era bastante importante q mtos profissionais de enfermagem entendessem que nao sao maquinas de curar ninguem, nao sao robots de fazer pensos ou prestar cuidados de higiene. sao pessoas que estao a CUIDAR de outras pessoas, e como tal nao as podem ver como apenas 'mais uma'.

é preciso sentir aquilo q fazemos, é necessario uma certa sensibilidade mas ao mesmo tempo ter sangue frio...

nao e facil ser enfermeiro...

daí existirem 'bons' enfermeiros e enfermeiros 'menos bons'...

depende do modo como cada é, e como encara a profissao.

evidente.mente disse...

Uau! E o Miguel salva o dia! =)

Luh disse...

E eu adoro estes relatos,fico vidrada a ler.

Ficou tudo bem com o miúdo?