domingo, 11 de janeiro de 2009

Sobre a Morte.

Após dois posts ligados ao tema da morte, fazer um post mais profundo acerca desse mesmo temo pareceu-me o caminho a seguir. A Ana C. desafiou-me a escrever algo sobre as nossas vivências com a morte. Como é óbvio só posso pronunciar-me acerca das minhas próprias emoções e aquilo que observo nos outros.


A morte. Este é um cenário com que nos deparamos mais vezes do que o que seria esperado. Nunca hei-de esquecer a minha primeira experiência (enquanto enfermeiro) com a morte. Era aluno do primeiro ano. Nunca vou esquecer a ansiedade que me invadiu enquanto me dirigia com o enfermeiro, em direcção ao cadáver. Tocar-lhe, mexer-lhe, parecia que as mãos não me queriam obedecer. E lembro-me da frieza e da indiferença do enfermeiro enquanto realizava as suas tarefas.
Frieza, indiferença, distanciamento... todas estas palavras podem definir a maneira como abordamos (ou como parece que abordamos) a morte e o morto. Por incrível que pareça, a maioria dos profissionais não está preparado para lidar com esta vertente (bem importante por sinal) da nossa profissão. É um tema que é pouco abordado nos cursos, ou então abordado de uma forma impessoal, o que deixa ao critério de cada um a maneira como lida com ele. E aí, a nossa cultura e formação social exerce uma influência tremenda. E como é que nós, europeus judaico-cristãos vemos a morte? Como algo mau... algo a evitar.

Daí, eu acho, esta postura de frieza ou melhor, despersonalização de quem morre. Deixa de ser o Sr. ou Sra. X para ser "o corpo", "o cadáver". Exemplo:
"Já foste dar a injecção ao sr. X?" em vida passa a "Já foste tratar do cadáver?" depois da morte. A pessoa que morreu deixa automaticamente de o ser - uma pessoa, e passa a ser um corpo, só. Quantas vezes oiço a nossa secretária do serviço a explicar os procedimentos burocráticos aos familiares do utente morto: "O cadáver vai ser entregue na casa mortuária, o processo segue para a secretaria onde terão de levantar a certidão de óbito para depois levantar o corpo.". Será talvez uma técnica de defesa.
Ou seja, não há um corpo de técnicas de abordagem a estas situações, principalmente no que diz respeito ao apoio imediato aos familiares.
No que me diz respeito, e ultrapassados os preconceitos gerados pela minha própria concepção de morte, acho que se deve tratar o utente morto exactamente como se faria se ele fosse vivo. Referir-me à pessoa pelo nome, respeitar o que ela foi em vida, respeitar o sofrimento que a levou à morte, no fundo, honrar a sua história pessoal enquanto indivívuo. E não é difícil. Um cadáver, um corpo, são no fundo invólucros que contêm uma pessoa e, com ela uma história. Além disso, foi alguém que nós conhecemos, a quem demos banho (existe algo mais íntimo do que dar um banho a alguém?), a quem aliviámos as dores e tratámos das feridas. Então porque, no espaço de uns momentos essa pessoa deixa de existir? Existir no sentido mais restrito, no sentido da sua história, da sua personalidade?
Enfim, esta ligeireza com que abordamos este assunto, tão bem ilustrada nos dois posts anteriores não é, não pode ser considerada como uma falta de respeito, é antes uma maneira de diminuir a tensão que a perda de alguém acarreta, a imensa pressão de falar com os familiares, de não ter resposta para as suas perguntas, a frustração de termos falhado na nossa função de manutenção da vida, o reconhecimento da nossa própria humanidade e da nossa própria mortalidade. Serve para, à falta de melhor técnica, para garantir o nosso equilíbrio mental e emocional
Na verdade o que nos assusta não é a morte em si mesma, mas sim todo o processo de deterioração que leva à morte e o sofrimento a ele associado. Todos vamos morrer um dia. O que eu gostava, como disse alguém um dia, era... acordar morto.

6 comentários:

Ana C. disse...

Valeu a pena desafiar-te para poder ler este texto. Acredito que não deva ser leve a tarefa de lidar com pessoas nos seus momentos mais íntimos, quando estão mais frágeis, quando colocam o alivio das suas dores nas vossas mãos. Daí ser complicado encontrar o equilibrio. Entre não perderem a humanidade, não se distanciarem ao ponto de as pessoas passarem a ser números, mas salvaguardarem-se apenas o suficiente para não levarem muita angústia para casa. Acho incrível não existir ao longo do vosso curso uma disciplina que vos oriente um pouco mais...

S* disse...

Adorei. :)

Por isso é que eu não daria boa médica. Para alem de ter pavor a sangue e a agulhas choro como uma madalena arrependida.

Parabéns pela "coragem" (que é necessária).

Jorge Rita disse...

Já tinha percebido esta ideia no primeiro post. Com todo o àvontade que a questão aí foi abordada, implicito estava também todo o respeito aqui explicitado.

Anónimo disse...

Profissão ingrata, a tua... Também não me imaginaria a trabalhar nessa área e por isso ainda bem que há pessoas como tu que o fazem da forma mais digna possível.

Sílvia disse...

É preciso muito coragem para saber lidar com emoções. Parabéns pelo post e pelo blog. Adoro...

Banita disse...

Parabéns!Aqui está um post muito bem escrito.
Ainda me custa dizer que a minha avó morreu e usar o tempo passado para descrever algo que ela fazia ou dizia... e já lá vão mais de 2 anos... é muito duro lidar com a morte, ainda assim, vejo e sempre me vi com capacidade de lidar com ela trabalhando num hospital. Deve ser porque tratas, cuidas, curas e morre-te alguém com quem não tens memórias e isso, faz toda a diferença!