O habitual pragmatismo da língua anglo-saxónica resume tudo em apenas seis letras: "me time". O "me time" é o mais precioso luxo de um pai (ou de uma mãe) de família, o nirvana egocêntrico no meio do bulício da existência pós-miúdos. Traduzido em português significa um singelo "tempo para mim", o que não tem metade da graça, porque perde aquele concentrado de letras que nos dá a sensação de estarmos a falar de uma coisa realmente preciosa e única. E Deus sabe como ela pode ser MESMO preciosa e única.
Nos tempos mais atribulados, a vida familiar e a vida profissional são como que duas paredes deslizantes a convergirem na nossa direcção. Nas piores fases, olhamos à volta sem saber como fugir ao esmagamento, tal qual Indiana Jones nas catacumbas de um obscuro templo indiano (e sem a miúda gira ao lado). É nessas alturas que o "me time" é muitas vezes a única chave que faz parar esse terrível mecanismo e nos permite recuperar o fôlego, pôr as coisas em perspectiva e voltar a ganhar forças para manter a cabeça fora de água no Maelström que a vida consegue ser, à boa maneira de Poe. No entanto, Indiana Jones (e Edgar Allan Poe) sabe bem como esses mecanismos podem ser traiçoeiros.
Há um efeito colateral, que é a obrigação de lidar com os problemas de consciência. É que o "me time" arrasta quase sempre consigo a desagradável sensação de que estamos a falhar como pais, maridos ou profissionais. Sentimos que precisamos desesperadamente de tempo para nós porque não somos suficientemente estóicos, ou então porque somos demasiado egoístas. Como o soldado que deserta da frente da batalha: achamos que estamos a trair alguém, ou toda a gente junta, do bebé de ano e meio à avozinha sobrecarregada.
Mas a consciência também tem as suas armadilhas, ainda mais perigosas quando se disfarçam de bons sentimentos. A verdade é que o "me time" é o refúgio que nos garante que ainda continuamos a ser nós, que o "eu" com que vivemos tantos anos não se eclipsou para dar lugar, em exclusividade, ao papá do Gui ou ao marido da Teresa. Às vezes dou por mim a pensar que combato ferozmente pelo território do "eu" como um animal que protege o seu último reduto. De outra forma, seria como se me acomodasse a ser fatiado pelo dia-a-dia - este bocado para os filhos, este para o trabalho, este para os deveres domésticos, este para as obrigações conjugais - até nada mais restar senão um fiozinho de mim.
Nos maravilhosos filmes de animação do japonês Hayao Miyazaki, o nome das personagens está profundamente ligado aquilo que elas são, à sua identidade mais profunda. Em "A Viagem de Chihiro", a bruxa Yubaba tenta controlar Chihiro apoderando-se do seu nome, como se ao ficar com aquelas sete letras conquistasse também a sua alma. O "me time" é o antídoto contra as bruxas do tempo e das obrigações, o refúgio que me permite dizer: "Continuas a chamar-te João Miguel."
Porque, nos dias mais tristes, o espelho da casa de banho já não é suficiente.
Por João Miguel Tavares em Notícias Magazine de 13 de Setembro de 2009.
Porque é reconfortante quando sentimos que não estamos sós... este é um texto que eu gostaria de ter escrito.
2 comentários:
É engraçado, mas um dia destes li uma crónica dele sobre uma ida à Eurodisney e lembro-me de pensar que a escrita era "género Miguel"
Adorei :)
Temos que fazer um esforço pelo Me Time, mas nem sempre é fácil...
Enviar um comentário