A sala é pequena. Ao meio uma mesa com dossiers numerados, esferográficas espalhadas e o telefone que não para de tocar. Um armário com gavetas cheias de papeis. Numa parede um quadro branco dividido em linhas e colunas repleto de palavras escritas por mãos diferentes. Nomes, idades, diagnósticos, exames, cuidados a ter. Por cima um relógio que parece estar sempre parado.
Saio da sala e encontro-me num longo corredor com portas sucessivas. Cheira a merda. Cheira sempre a merda por aqui. Apenas estamos já tão habituados que julgamos que não. Um lamuriar constante preenche a atmosfera. Um gemido, uma cantilena dolorosa, um grito que quebra a monotonia para logo se calar. De onde vem esse murmúrio carregado de dor? Não sei bem, das paredes talvez. Do ar fétido, dos ocupantes. A luz que banha os quartos parece ficar de fora. Os quartos são pequenos, demasiado. Uma cadeira, uma mesa, uma cama. E nela deitado, um doente. Um corpo envelhecido e rígido. A sua pele é flácida, os seus olhos fixam o vazio. As suas mãos tréulas procuram uma corda que os tire do sítio profundo e escuro onde se encontram. Eu dou-lhe a minha mão por momentos e depois retiro-a. A mão agita-se no ar procurando novamente e eu saio do quarto.
Chegam as visitas, um coro de vozes, passos e portas a abrir toma conta do corredor vazio. O Colorido dura uns minutos e depois, tudo calmo novamente. Espreito para os quartos. A cama ocupada é como se estivesse vazia. O centro da visita parece ser a TV que debita imagens e sons durante todo o dia, para o vazio. Parece haver uma espécie de adoração daquele deus formatado. As pessoas olham para cima, absortas, dominadas. A mão trémula procura ajuda. Encontra-a apenas para ouvir "Adeus, até amanhã" mas parece que essa frase é dirigida ao aparelho.
As luzes apagam-se e os vultos tomam conta do corredor. O murmúrio continua, hoje e sempre.
Nas sombras vejo um dos corpos que saiu da cama e arrasta-se pelo corredor, curvado sobre a parede. Parece carregar o peso do mundo. A mão procura um apoio e agarra a minha quando lhe toca. Entro no quarto escuro e confino o corpo ao local a que ele pertence. Volto-lhe as costas. Volto para a sala, a luz aqui nunca se apaga.
(estou mesmo farto disto...)
10 comentários:
De facto não deve ser nada facil, eu estou numa area que em nada tem a haver com a tua, mas fui operada á pouco tempo, nada de mais uma operação estetica, e percebi muito aquilo que descreves...mas se foi aquilo que escolheste de certo que é o que gostas e deves o fazer com todo o profissionalismo que exige, mas as vezes é dificil trabalhar só com a razão e esquecer o coração :S
bah força nisso senhor enfermeiro ;D
Bjoquinhas
Visto por este prisma, parece triste e muito deprimente.
Pensa nas pessoas que ajudas...
Caro colega... como te percebo!! Deste um ar filosofico ao nosso dia a dia =)
E pronto já comentei qualquer coisa no teu blog..ihihihih
Beijinhos da MJ
Pois nao deve ser nada facil viver com a degradaçao humana,mas sabe tao bem ter uma mao para agarrar e falo por expreiencia propria,nem imagina para quem esta deitado naquela cama o que significa ter uma mão para agarrar.
Felicidades e agarre muitas maos
Um mérito a toda essa rotina que descreves: Fez-te escrever com o coração.
E eu gosto de ler palavras que saem bem de dentro de quem as escreveu.
Parabéns pelo texto e força para tudo o resto.
Caro Miguel,
E, talvez não seja a primeira vez que te sentes assim... e sabes que isso vai passar!!
A verdade, é que não estás sozinho... quando á noite, na penumbra, olho para os meus doentes completamente imobilizados e dependentes e, penso nas suas vidas e histórias antes da tragédia os ter atirado para aquelas camas... fico com os olhos marejados!!! Rapidamente saio do transe, os alarmes despertam-me e ligam a Enfermeira!
Quando voltam a Mariana e o Gabi!?
Estás a precisar dos teus elemntos estabilizadores... estás a precisar de colo!!
Cumprimentos
A.Silva
Miguel
Acompanho de há muito o seu blogue, ou melhor desde a altura em que ouvi falar dele na Comercial. Descobri um ser humano que fala do seu dia a dia profissional, com um misto de alegria/tristeza, disfarçadas com ironia que nos faz sorrir.
Continue a privilegiar-nos com as suas palavras e não deixe de apertar as mãos a quem tanto precisa.
Felicidades
Margarida
pois é...é mesmo muito difícil o dia-a-dia de quem trabalha em enfermarias, e ainda mais se forem de medicina ou urgências...
tudo o que descreveste fez-me lembrar esse mundo do qual estou arredada há quase 1 ano...
enfim...mas há as pequenas alegrias que depois fazem a diferença...
beijokas
Miguel,
este texto entrou mesmo cá dentro. Fez eco e ainda continua a fazer. Lindo e tão terrivelmente real, pelo que já me pude aperceber. Tão tristemente real. Gostei muito.
Beijinhos
Hold on...
PS: Anda para o bloco!!! :P
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