Lidar com crianças doentes não é fácil. Nada fácil mesmo, nem para os pais, nem para os profissionais de saúde. Contudo a criança é, obviamente, a menos responsável pelo seu tratamento. Observo com alguma apreensão uma atitude que se generaliza cada vez mais entre os pais de crianças pequenas (digamos até aos 10 anos) e que se prende com uma certa inaptidão para lidar com a criança doente. Confesso que hoje, enquanto pai de um menino de 2 anos que não gosta de médicos, compreendo melhor a angústia dos pais quando confrontados com a recusa do seu pequeno em receber o tratamento.
O que deixa perplexo é perceber, em cada vez mais casos, a atitude excessivamente democrática de alguns pais perante os seus filhos. Falando curto e grosso, são os putos que mandam lá em casa e os pais vivem ao sabor dos apetites dos miúdos. Hoje tive um caso paradigmático: uma miúda com 7 anos que se recusava e fazia birra porque não queria fazer um aerossol (!). Estamos a falar de uma criança com capacidades cognitivas para perceber o conceito do tratamento que ira receber e que, de facto, não adviria qualquer tipo de desconforto com aquele tratamento. Pois a miúda gritou e berrou e bateu na mãe e esta manteve sempre aquele registo de quase súplica, nunca se impondo claramente e terminando com uma frase que me causa urticária: "Ela não quer...", como se a vontade da menina fosse suprema e irreversível.
Um outro caso aconteceu quando um menino de cerca de 6 anos me chegou ás mãos para fazer uma injecção de penicilina. Claro que dói e é desconfortável mas é inevitável e o último recurso. O puto berrou e esperneou e bateu e mordeu no pai sem que este tivesse uma postura acertiva e inequívoca acerca de quem mandava. Informei o pai que o menino teria que ser imobilizado e ele concordou. Quando deitámos o menino e o segurámos para eu lhe poder administrar o fármaco, o pai afastou-me bruscamente e levou o menino, recusando que o seu filho fosse medicado. Meus caros amigos, isto é um crime! Além de que o pai reforçou o comportamento negativo do filho e hipotecou as hipóteses que havia de ele perceber que o tratamento é perfeitamente suportável e prejudicou o seu filho, negando-lhe o acesso ao tratamento mais rápido e eficaz! Cada vez mais me parece que os pais, na ânsia de demonstrar amor e carinho, confundem a educação pela positiva com o facilitismo e o mimo em excesso, transformando os seus rebentos em monstrinhos mal-educados, caprichosos e manipuladores.
Para terem um exemplo de como isto pode ser verdade, certo dia uma mãe ao dirigir-se a mim dizia-me que era melhor chamar mais duas pessoas para imobilizar o seu filho porque ele recusava as injecções e tinha uma força bruta. Ora, eu entendo que este tipo de discurso só serve para reforçar esse comportamento por parte da criança que se sente muito importante, ao ponto de a mãe avisar um outro adulto acerca da sua força. Neste caso (e atenção, que isto nem sempre resulta) levei o rapaz (mais ou menos 8 anos) para dentro e expliquei-lhe o que se iria passar e avisei-o que o iria picar as vezes que fossem necessárias até o medicamento estar administrado em toda a sua totalidade e que, quanto mais força ele fizesse, mais seriam as picadas envolvidas. Expliquei-lhe ainda que eu era bastante mais forte que ele e que podia sempre chamar mais um adulto para me ajudar. Ou seja, todo o seu poder, a sua arma de arremesso, foi anulado! Toda a sua aura rebelde e agressiva desapareceu e o miúdo portou-se lindamente!
A minha abordagem para estes miúdos rebeldes (e estou a usar um eufemismo!) é a de lhes mostrar que ali, naquela sala, não são nem eles nem os pais que mandam. Sou eu! E com maior o menor dificuldade, dando tempo aos pais para conversarem com eles e dando pistas subtis aos pais para firmarem a sua posição, eles acabam por aceder. A miúda do aerossol de hoje demorou cerca de uma hora a aceder mas, no final disse-me "Não doeu!".
9 comentários:
Com a idade desses meninos cheguei a levar duas injecções de penicilina em apenas um mês e nem tinha direito a estrabuchar Lol
Enquanto lia este episódio do processo clínico, revi muitas situações caricatas com que me deparo no quotidiano profissional...e assino por baixo acerca da postura do colega:)! Os pais de hoje, na tentativa de gerirem carinhos, atenção, cuidados de melhor qualidade desresponsabilizam-se da função de educadores e da prestação de cuidados parentais, com regras e limites ditados pelos filhos.
Das situações mais caricatas, um bebé de um mês com febre, a mãe esperava pelo pai para lhe administrar supositório porque "o bebé não deixava pôr"...com um mês?!
Hoje em dia os pais/mães sofrem de um excesso de culpa por trabalharem muito, deixarem os pequenos demasiadas horas no infantário, etc, etc. ,etc.
Os nossos pais tb não tinham assim tanto tempo livre e de qualidade connosco e a mim parece-me que a minha geração, a geração rasca, não se saiu assim tão mal...
Com isto não quero dizer que devemos seguir sem questionar o que os nossos pais faziam, mas penso que é preciso saber relativizar as coisas e acima de tudo não nos podemos demitir da função educativa inerente ao papel de pai/mãe!
Tenho uma amiga psicóloga que diz uma coisa muito sensata "Não há pessoas que não tenham defeitos e mesmo que houvesse, os filhos arranjavam alguma coisa para culparem os pais", enfim...
Beijos grandes,
Márcia
E além disso tudo que falaste ainda mandam a mensagem negativa de que há algo de errado com o tratamento, que é de alguma forma mau, e não bom, para os meninos. A autoridade dos pais deve ser dirigida percebida também como protecção e amor.
A assertividade, julgo eu, serve não só para mostrar quem manda, mas acima de tudo que quem manda só quer o melhor para o pequeno diabinho e que nunca uma mãe ou um pai deixaria que lhe fizessem mal.
Crianças com limites bem estabelecidos são mais felizes, não tenho a menor dúvida.
Os pais acham que por transmitirem regras os miúdos podem deixar de gostar deles. Não sei porque pensam assim, mas há muitos que são assim. Ora, basta ir ler um livrinho daqueles sobre ser pais e lá explica exactamente o contrário: os miúdos precisam de quem lhes mostre que há regras, limites e afins, porque assim também percebem que os pais os vão proteger das adversidades porque são "fortes".
Não sei explicar isto melhor, mas lembro-me bem de sentir a "severidade" do meu pai sem a exclusão do amor - os miúdos percebem que mesmo sendo "duros", os pais os adoram - e sempre me passou a sensação de protecção. É isso que faz com que os miúdos gostem dos pais; não a permissividade. Faz monstros, disseste-o muito bem.
Tenho 4 sobrinhos. Dois exemplos de "monstros", outros dois bem educados (e caem nas graças de médicos e enfermeiros!), sei bem do que falas e é um assunto que me preocupa... :-S
Depois admiram-se que esses putos, com 16 ou 17 anos, entrem pelas escolas de metralhadora na mão a disparar sobre tudo o que lhes aparece pela frente. Grandes provas de amor, sim senhor. Mas que se pode fazer se, em certos países, um pai (ou mãe, claro) pode ser denunciado por dar uma palmada no cu do puto. "É uso da violência", é a resposta que ouço quando confronto esses pais, recordistas da passividade, com o facto de que também eles as levaram e tinham muito mais respeito pelos próprios pais (respeito e não medo, atenção). Enfim... Estamos apenas a começar a colher o que andamos a semear há já algum tempo. Daqui a uns 10 ou 20 anos, isto vai tornar-se giro...
Belo texto,Miguel,excelente mesmo.
Há cada vez mais ditadores de palmo e meio nas casas deste país(e não só acredito eu).A cada cedência que lhes fizerem,aumentam o poder deles.
Aqui a Luh nunca fez espalhafato e birra com os senhores e senhoras de bata branca.Era demasiado tímida para isso...xD
Acho que o mal das criançinhas mal-educadas é geral.Mas imagino que no plano da saúde não deva ser fácil lidar com isso, e com pais "banana".
Olá Miguel!
Cheguei ao seu blog através do blog da Ana C e estou a adorar.
Quanto ao seu post, já vi cenas idênticas quando às vezes vou ao Hospital de Cascais.
Jamais permitiria tal atitude em relação aos meus filhos, desde pequenos tento mostrar à eles que os médicos e enfermeiros estão alí para nos ajudar e nos curar se possível.
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