quinta-feira, 23 de setembro de 2010

-Oh merda! Já está com aquela respiração de peixe!
-Foda-se... pode ser que se aguente até de manhã. Não queria nada ter de andar a lavar e ensacar o morto ás tantas da madrugada.
-Achas o quê? Quatro da manhã?
-Não pá! Ou morre agora ou então que se aguente aí até às 7. Preciso mesmo de ter uma noite descansada.
-Podíamos lavá-lo já e -lo no saco agora! Era só fechar depois!
(risos)
-Ehhh pá, que mau! Muito mau!!
-Coitado do homem...
-Coitado mesmo. Ao que um gajo chega...

Esta conversa aconteceu. Aliás, acabou de acontecer. E ainda fico impressionado com a dureza das palavras que, por vezes, saem da minha boca. Na verdade, julgo que nenhum de nós, que as proferimos as sentimos verdadeiramente. Serão talvez um escape perante o inevitável, o sofrimento de um Homem, a morte de alguém e o caminho de sofrimento que esse alguém tem de percorrer. É a impotência, a pequenez, a nossa insignificância, o apodrecer dos corpos outrora jovens. É enfrentar o nosso futuro mais negro todos os dias, uma e outra vez. É projectar-mo-nos naquela cama, com aquela dificuldade, com aquele corpo esburacado pela pressão dos nossos próprios ossos já despidos de qualquer músculo. Foda-se! Eu não quero morrer assim! E se algum dia me encontrarem assim, naquela decrepitude, a chafurdar na própria merda, a cheirar a podre, a lutar para meter ar nos pulmões peço-vos: acabem com o meu sofrimento! Não me importa de que maneira, mas sejam rápidos e eficazes. Chama-se misericórdia e há poucos que a pratiquem.

13 comentários:

Perfectly Crazy disse...

Realmente na maioria das vezes somos tão insensíveis...

esqueci a ana (ex-ana) disse...

"enfrentar o nosso futuro mais negro todos os dias" é esse desafio diário que não nos pode deixar indiferentes ao valor do vosso trabalho como profissionais.
ps-o humor pode ser terrível

Crenteoptimista disse...

Sei que não devia, mas ri-me a imaginar a situação...
A vida não é justa e raramente termina bem.É esperar ter sorte...

Anónimo disse...

há coisas q nos ultrapasamm, por vezes... torna-se tudo tao mecanico q nem as pensamos...é humano..

Melissa disse...

Hmm. Não sei, Miguel. Ou é isso tudo que disseste ou é por pura e simplesmente terem banalizado a morte de alguém como mais uma chatice de trabalho, como eu banalizo uma falha no ficheiro de legendagem.

Acho explicável que isso aconteça, porque, lá está, o teu trabalho é esse e não legendagem. Mas do ser explicável ao ser aceitável, aí depende de como isto se encaixa dentro do próprio esquema de valores de cada um, que é uma maneira comprida de dizer: cada qual sabe onde lhe dói o calo.

Ana C. disse...

Isto são apenas muitos anos a lidar com o fim físico dos outros que não é bonito, nunca é bonito.
Tu pura e simplesmente já não tens o filtro.

Carla Santos Alves disse...

não sei o que dizer..ou melhor sei, mas é complicado...acho que a conversa foi um desabafo...de trabalho, despachar serviço, so que há uma diferença com o vosso serviço, é que eu despacho contratos e abrevio e deixo para amanhã, os seres humanos precisam de vocês, muito...do vosso carinho e amor e tb da vossa misericórdia...
Por isso os medicos e os enfermeiros têm ou devem ser "anjos" ...ainda que muitas vezes eu entenda o quão dificil deve ser.

Autora de Sonhos disse...

Não julgo essas palavras, acho que cada um sabe como lidar com as situações, e se essa forma servir para aliviar a carga emocional...que seja!

gralha disse...

Tens um trabalho mesmo difícil, caramba! É preciso muita resistência.

KiKa disse...

A mim não me parece que essa seja a melhor forma de aliviar cargas emocionais ou qualquer outro tipo de cargas...

E caso um dia eu esteja nessas tão famosas condições, mesmo que até me despachem rápido para não sofrer tanto, agradeço que os colegas tenham esses desabafos quando o meu cérebro, de todo, já não funcionar...

Lá está, como foi dito, há formas e formas de encarar essas realidades profissionais, dentro dos valores que me orientam, não são aceitáveis...mas cada um sabe de si :)

Alexandra Nobre disse...

Se bem que entenda como desabafo, escape, descompressão, sei lá o quê... não posso deixar de dizer que fiquei muito chocada. Pede para,que se alguma vez estiver assim, lhe acabem com o sofrimento rápido e, em simultâneo, pede também para que aquela pessoa se aguente até à mudança de turno para não ter chatices.
Que incongruente e que cruel!
Desculpe mas tenho que dizer isto.
Alexandra

Anónimo disse...

Esta é uma sensação que apenas quem lá anda sabe o que é...
A primeira morte custa muito! Vamos para casa a pensar nela, a primeira pessoa que nos morre nas mãos... hoje ainda me lembro do que me disse a minha primeira pessoa, sei a idade que ela tinha e a cama em que ela estava. Já nada havia a fazer, mas naquele momento eu tremi e dps fui para a casa de banho chorar...
Hoje, já não me lembro de quantas pessoas me morreram nas mãos, mas vos garanto que seria impossível continuar nesta vida a salvar vidas quando nos deixamos levar pelas emoções das vidas que já têm um culminar traçado.

hoje já não me lembro de quantas pessoas ajudei a salvar e não tiveram um único gesto de agradecimento... isso também magoa a quem está deste lado, lembrem-se

Eu sei o que é a respiração à peixe, sei que é feio dizê-lo, mas tembém sei que quando a vejo em alguém mais novo, é muitas vezes essa respiração à "peixe" que nos chama à atenção que algo está mal, e conseguimos salvar aquela vida!

Não gosto de falar alto, ou dizer algo de inconveniente junto de pessoas que estão a momentos de partirem deste mundo, mas temos que o levar com muita naturalidade.

Agora o prazer e sentimento que tem salvar a vida de uma pessoa é inigualável... e eu também já não me lembro de quantas ajudei a salvar!

Cá estaremos para ajudar quem mais precisa, sempre!

Alexandre Costa, Enfermeiro

Guilherme de Carmo disse...

Outro dia estava num contexto semelhante ao que referes.
Numa sala estava 1 doente, 1 morto, eu e a minha colega com muitos anos de serviço. O morto ainda estava com a mascara de oxigenio e diz a minha colega
-Acho que o oxigenio está a fazer mal a este senhor... e rimo-nos (baixinho). A seguir tinha colhido um sangue ao doente e pede-me para levá-lo e eu pergunto se era daquele senhor (do morto) e rimo-nos novamente.
Depois ela disse algo que é a mais pura das verdades. "Temos que nos rir destas coisas, senão não aguentamos muito tempo"