quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Há sempre duas faces (ou mais) em todas as histórias.

Naquela altura eu era um jovem enfermeiro com apenas alguns meses de experiência. Trabalhava numa grande Urgência de um hospital de Lisboa, daquelas com 6 e 7 horas de espera. Estava destacado para a Equipa de Reanimação, um grupo de 3 enfermeiros nomeado para acorrer às situações de morte eminente do doente. O "besouro", uma campainha de som rouco, tocou. Era a hora de correr para a sala de reanimação. Os bombeiros tinham trazido uma senhora, vítima de acidente de mota. Surpreendentemente não apresentava ferimentos graves visíveis. Alguns hematomas e escoriações. Mas estava pálida, o olhar vazio. Os médicos chegaram logo depois de nós. A doente sangrava profusamente pelo nariz e pela boca. Mau sinal, muito mau sinal... fractura da base do crânio, lesão cerebral grave e potencialmente fatal. Os monitores mostravam tensões arteriais baixas, pulsos fracos, a linha do electrocardiograma era frágil e prenunciava uma paragem. A minha função consistiu unicamente em tentar parar aquela hemorragia nasal. Apenas isso e não fui capaz. Coloquei compressas atrás de compressas, e esses compressas logo ficavam ensopadas de sangue. Colocava mais compressas e essas ficavam púrpuras em segundos. Era tanto sangue... mas a senhora não tinha ferimentos.
Os monitores apitaram todos, estridentes, histéricos. Os médicos e os enfermeiros mais experientes iniciaram as manobras de suporte de vida, básico e avançado. E eu continuava a colocar compressas que logo se ensopavam em sangue. Eles comprimiam o peito dela, introduziam soros e fármacos para ajudar o coração. Nada resultou. A linha do monitor cardíaco ficou plana. E o alarme contínuo. Alguém desligou o aparelho. Os médicos saíram.
O silêncio tomou conta da sala até que um bombeiro explicou o que se passara. A senhora tinha 41 anos e era de uma família rica. Festejava naquele dia o aniversário de casamento na sua quinta. Oferecera uma mota ao marido e foram dar uma volta. Num cruzamento, um ligeiro toque com um carro desequilibrara o marido e ela caiu e bateu com a cabeça. Foi o suficiente. Tinha três filhos. Dezassete, treze e sete anos. Estavam todos na sala de espera. O chefe da equipa de enfermagem ordenou: "Limpem a senhora. Levem-na para a sala de exames. Deixei-na sem tubos, sem soros, sem monitores. E vistam-na com uma bata. Depois mandem entrar a família..."
Limpei o corpo, retirei tubos e agulhas, vesti-a. Continuava a sangrar pelo nariz por isso tive de deixar compressas nas narinas. Fiz o melhor que pude. Depois entrou o marido, sozinho. Sentou-se junto à senhora e chorou. Abraçou-a e chorou. Beijou-a e chorou. Por esta altura as minhas colegas choravam também, a um canto. e eu sentia-me claustrofóbico, o ar parecia demasiado pesado para respirar e queria sair dali. Mas nenhum de nós, enfermeiros, abandonou a sala. O homem recompôs-se e mandou entrar os filhos. Os dois mais velhos choravam serenamente. A pequena, 7 anos, perguntou: "Mamã? Estás a dormir mamã...". Saímos todos, os enfermeiros, era demasiado. Deixámos a família a sós.
Naquele turno e nos próximos, uma sombra de tristeza escureceu o ambiente, as conversas, os humores. Mas outros doentes entram e morrem a toda a hora. Nós estamos lá para eles, prontos, preparados, motivados. Aquela senhora foi especial para todos nós e ainda hoje falamos dela.
A enfermagem não é uma profissão romântica.

11 comentários:

su disse...

e é, sem dúvida alguma, uma profissão que eu não quereria ter. é necessário coragem... e sempre que [te] leio, percebo que é coisa que não tenho...

Márcia disse...

Li os 2 post acerca da morte, ri com o primeiro e chorei com o último, também li a tua “explicação” acerca do 1º e consigo perceber/identificar-me com os eles; possivelmente porque uso, também, o humor negro em situações de stress/ansiedade/fragilidade. É uma forma de se lidar com emoções negativas, de se fazer a catartese dos medos, frustrações, ansiedades, etc.
Aliás, uso o mesmo humor negro em algumas situações sobre o filhote e a maioria da pessoas fica indignada/chocada com essas afirmações/piadas e normalmente tenho que rapidamente justificar que é uma piada e tal, enfim…
Penso que as pessoas reagem assim porque também sentem o mesmo, mas não tem coragem do expressar essas emoções negativas, pois o que sentem não é o desejável socialmente. Todos nós já fizemos piadas mórbidas com a morte, quem não se lembra das anedotas na altura da morte da Diana ou do Michael Jackson mais recentemente; mas quando alguém assume esse lado da sua personalidade é criticado.

MV disse...

Subscrevo. Não é uma profissão romântica. E ainda bem.

Autora de Sonhos disse...

Não é romântica,é dedicada.
Não se dá o devido valor a esta profissão. Não a sinto na pele já que não a tenho (a profissão)mas sei dar o devido valor.
Há por aí muito(a) enfermeiro(a)que não passam de bestas, mas depois há os Srs Enfermeiros, e por eles o meu Bem Haja!

Nuvem disse...

só mesmo tu para me fazeres sempre vir a lágrima ao canto do olho... talvez porque não queria pensar que poderia ser essa senhora e a filha podia ser a minha (por causa das coisas vendi a TDM...)
beijinhos e parabéns pela coragem dessa profissão tão desgastante

Carla Santos Alves disse...

...por outro lado deve ser maravilhoso as vidas que salvam....

por isso não escolhi essa área...não teria estofo para aguentar!

blogando-me1 disse...

Sempre o disse e direi, para se estar em qualquer profissão, temos que ter um dom. Quem sabe tu não o terás?
Sei de muita gente que escolhe uma profissão, só pelo dinheiro que ela possa acarretar, mas também conheço outras que estão em certas profissões, porque é aquilo que gostam.
Não me querendo alongar muito neste comentário, vou só contar uma coisinha.
Tenho uma filha com 20 anos. O curso que tirou, foi ela que escolheu, apoio a lares e infantários. O estágio foi maioritariamente em infantários. Hoje está a trabalhar num lar. Um dia que chegou a casa super cansada, queixou-se. O pai disse para ela desistir, afinal é nova, tem notas para entrar em medicina e poderia ter melhor futuro. Sabes qual foi a resposta dela? Foi o que eu escolhi, gosto do que faço e o cansaço faz parte do meu trabalho. Nem dizer mais, nesse dia senti-me a mãe mais orgulhosa e babada ao cimo da terra.

Claro que com este post, se me humedeceram os olhos. Nunca estamos preparados para ver morrer as pessoas.
Continua assim, com esse humanismo que tens, de certeza, és uma boa pessoa.

Beijinho

Unknown disse...

Olá. Fico FELIZ pelo que li. De facto poucas pessoas conseguem entender esta profissao. Valorizam muitas vezes outros técnicos, mas de facto, nas horas de maior angustia e dor somos nós que estamos presentes junto de quem sofre. Apenas quem nunca viveu a "impotência" de nao conseguir salvar uma vida,poderá tecer comentarios desagradaveis á profissao de Enfermagem.
Parabens pelo profissional que é e pelos sentimentos e emoçoes que vivencia na pratica do cuidar, pois, pobres são aqueles que na sua profissao nao tem essa oportunidade...afinal somos humanos!! Que tudo de bom lhe aconteça e continue a cuidar assim.
Beijo e bom trabalho

Bluebluesky disse...

ouch... :/

KiKa disse...

Não é nem tem de ser... e já agora, ainda bem que não é! Gostei muito mais deste post... :)

mãe pimpolha disse...

Sem ser em estágios, lidei com a morte uma única vez em 7 anos de serviço. Trabalho numa pediatria e foi duro, muito duro. Chorei muito naquela sala de emergência, o bebé tinha 4 meses.
Ainda hohe me doi muito.
Beijocas