Há uns post atrás, na zona de comentários desenvolveu-se uma curta troca de ideias sobre o Limbo. Esse espaço vazio onde pairam as almas que não têm acesso ao Céu. Eu, que sou um agnóstico céptico, andei desde então a matutar nessa questão do que seria o limbo. E hoje vi.
Entrei no quarto para mais uma intervenção de rotina. O doente, paralisado numa das metades do corpo, a outra metade fora do seu controlo. Não consegue falar, muito embora o seu olhar revele o desespero de alguém que tem ainda muito para dizer. Uma sonda sai de uma das suas narinas, uma outra pendia de lado da cama terminando num saco onde se acumula a urna. Uma das mãos presa com uma amarra à cama. Os seus músculos levam a que o braço esteja permanentemente dobrado, impedindo assim que o soro colocado numa veia flua, pelo que é absolutamente necessário que ele esteja esticado. A fralda, como sempre, está suja e precisa de ser mudada. O seu corpo está inchado e a sua carne tem a consistência de plasticina. A minha mão fica marcada na sua perna quando o posiciono, como um molde de gesso.
A sua filha está sentada ao seu lado e limpa apressadamente as lágrimas quando me aproximo. Tem os olhos inchados e as suas mãos tremem ligeiramente, agarrada à mão presa do seu pai. Olha-me com todas as interrogações a faiscar nos seus olhos mas conheço bem a pergunta que não me faz, apesar de ser a que mais quer ver respondida: Quando? Chama-me a atenção para a mão inchada quando esta é apenas o menor dos seus problemas. Tem de dizer algo, sente-se na obrigação de o fazer. O silêncio é demasiado pesado. Também eu o sinto quando entro. Respondo com carimbo aplicado nestas situações: estamos a fazer todos os possíveis. Deveria eu escutar esta mulher? Deveria sentar-me a seu lado e absorver as suas dúvidas? Devia alongar-me nas explicações técnicas? Saio com um "até já".
A filha debruça-se sobre o pai e beija-lhe a face do lado que ele não sente, do seu lado morto. Derrama as suas lágrimas na face do seu pai. Ele chora também, a face inexpressiva parece ser pequena para aqueles olhos suplicantes. Qual a sua súplica? A filha soluça enquanto percorre apressadamente o corredor para a saída. O doente solta um gemido que percebo vir do mais profundo de si. Arrepio-me.
Isto é o limbo na Terra.
17 comentários:
Juro que queria dizer qualquer coisa muito inteligente, muito profunda, mas não consigo.
Este é talvez dos meus piores pesadelos.
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Que horror.
As histórias de sofrimento fazem-me sempre chorar.
Tenho tanto medo que as pessoas que amo sofram assim, a ponto de desejar a morte..
Miguel,
Não consigo articular bem as palavras depois de tão pungente descrição da realidade do teu dia a dia de trabalho.
Imaginar o sofrimento de tantas e tantas pessoas como essas do artigo (pacientes e familiares/amigos) e do que vocês, profissionais de saúde, têm de muitas vezes "aguentar" é extremamente duro.
Uma força de alguém que não sabe se teria força de desempenhar tal tarefa sem se desmanchar,
Zé
É uma profissão abençoada, a tua, cara-pálida. É relevante. Agradece por a teres quando te sentires avassalado.
Miguel, por isso é que não perco um post teu... tu consegues pôr em palavras cruas aquilo que passam diariamente as pessoas doentes e o que familiares sentem quando os vêm nesse estado! Cru, mas muito realista.
Depois de ter visto o meu avô definhar lentamente durante 3 meses vítima de sucessivas tromboses que o foram tolhendo progressivamente até à decadência e depois de ter assistido à morte lenta da minha mãe, em luta acérrima com um cancro de mama, tornei-me agnóstica, eu que sempre fui católica praticante e church-going...
Nunca me perdi muito nessas dúvidas de se existe um limbo ou se existe vida depois da morte. Actualmente o que acredito é que somos energia e quando nos desprendemos do nosso corpo terreno, nos transformamos em energia positiva.
E há dias em que sinto a energia extremamente positiva da minha mãe, um exemplo de paciência pura e do meu avô, o meu ídolo em sabedoria!
Também eu, como a filha do teu paciente, derramei muitas lágrimas nos seus rostos inexpressivos e já cansados, e pedi a "alguém" que os desamarrassem daquele «degredo corporal»...
Miguel, ha muito que nao comento por aqui porque tenho andado ausente, mas este é um assunto que me toca muito.
É por estas e por outras, que eu defendo a Eutanásia. Ninguém deveria ter que sofrer tanto. Nenhum filho, mulher,parente ou amigo deveria ter, como última recordacao, um cenário de tanto sofrimento nem tristeza.
Penso muitas vezes nisso e tenho quase a certeza que esse tão falado limbo está do lado de cá e não do lado de lá.
O outro lado é uma libertação...
Gostei muito deste texto.
É preciso coragem para assumir tal profissão Miguel... É preciso gostar mesmo!!
Infelizmente sei o que é isso....
a minha avó esteve quase um mês no hospital a lutar... até morrer.
teve uma hemorragia interna que ninguém quis/conseguiu parar e nem com as inúmeras transfusões se resolveu.
Foi ficando negra... inchada... e quando finalmente cedeu tinha o corpo todo negro, do sangue pisado.
Foi um verdadeiro limbo, para ela e para a família que a acompanhou(ámos) nesta fase.
E o pior era sentir nos olhos dela o sofrimento, as dores... e saber que não se podia/fazia nada... era só esperar.
ja passei por isso algumas vezes enfermeiro...um combinado de hemiparesia, anasarca, dispneia, insuficiência cardiaca, hipotensoes acentuadas, hematuria, dor, etc..ver alguém nesta situação e pensar que em tempos essa pessoa ja foi também um bebé,uma criança, um adolescente, um adulto, alguém como nós, e que agora se encontra neste ou naquele estado, dá que pensar... :|
Até me arrepiei. Bom texto.
Ai, Miguel, tu não faças chorar uma grávida que ainda me vai sair um bebé chorão!
Deve ser horrível viver nesse limbo, mil vezes a morte de uma vez que preso num corpo que não funciona e onde não se quer estar!
Damn...
Trabalhar no bloco as vezes defende-nos "" desses momentos mais pesados.Cobardia ou Sorte? Nem sei...
Tenho passado por aqui há uns dias...
E a sua escrita faz me querer voltar.
Escolhi comentar este post pela intensidade que lhe conseguiu dar. E é duro ter consciência que esta é a sua realidade.
Por isso admiro todos os profissionais de Saúde. Perdoe a falta de originalidade, mas de facto, não me imagino "nesse" seu papel ... Difícil e ingrato.
Parabéns pelo blog :)
Porra Miguel! Este é, muito possivelmente o blog mais completo, com mais conteudo (pleonasmo) de toda a blogosfera. Que poderias tu dizer mais? Bem hajas.
Deve ser tão dificil lidar com um fim assim..
Este teu post (espero que não te importes que te trate por tu) fez-me recordar um dos períodos mais duros da minha vida: há poucos meses perdi o meu avô materno!
a descrição que fazes neste post é por demais similar áquela que vivi quando o ia ver. ou melhor, com aquela que a minha mãe vivia.
Ver uma pessoa de quem gostamos a sofrer por não conseguir mexer uma parte do seu corpo, por a outra estar continuamente a tremer excepto quando ele se concentra para nos apertar a mão quando o vamos ver e quando o olhamos nos olhos vê-mos que ele está lá: o corpo pode já não lhe obedecer mas lá dentro continua aquele de quem gostamos e ele sabe quem somos!
É muito doloroso... talvez por isso quando o ia ver não lhe conseguia dizer muita coisa, limitava-me a ficar a olhar para ele, a agarrar-lhe a mão e a pensar em... nada. sim, em nada, porque não sabia se devia pensar quando é que ele ia ficar melhor ou quando é que ele ia morrer!
P.S.- no espaço de alguns minutos fui das lágrimas do riso às lágrimas da tristeza.
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