quinta-feira, 3 de março de 2016

Eutanasiando.

Começo desde logo por esclarecer que não ouvi as declarações da Bastonária da Ordem dos Enfermeiros e que me refiro apenas à sua afirmação que a eutanásia se pratica já nos hospitais em Portugal, que vi reproduzida em inúmeros meios de comunicação social.
Não sei que é esta enfermeira, não sei de onde vem, qual a sua história nos cuidados, qual o seu currículo. No entanto afirmar que a eutanásia já é praticada nos hospitais portugueses é de uma leviandade extrema sobretudo quando o tema é de uma delicadeza que não podemos negar. Agora, mais do que se desdobrar no diz-que-não disse, de vir com a eterna manobra política do "a minha afirmação foi descontextualizada", esta enfermeira tem que assumir: onde? quem? como? quantas vezes? A eutanásia é crime em Portugal, certo. Mas mais do que ser um crime (que é um reflexo da nossa tradição conservadora) trata-se de uma decisão que deve partir do doente claramente consciente e informado das causas, das consequências, das vantagens et desvantagens da sua escolha, seja ela qual for. E isso não é uma decisão médica, nem da equipa hospitalar. É um processo em que nós, os profissionais devemos estar envolvidos mas apenas como consultores para apoiar a decisão do doente e fornecer-lhe os meios técnicos que ele precisa para atingir o seu objectivo.
Por isso, que uma representante dos enfermeiros venha a público afirmar que há profissionais (sejam eles quais forem, atenção!) que tomam esta decisão sem nela envolver o principal interessado, isso incomoda-me. A vários níveis. Em primeiro lugar, se uma colega minha me disser que assistiu a um acto desses e com ele compactuou, só a posso acusar de negligência profissional e ética pois, objectivamente os interesses do paciente não foram devidamente acautelados. Em segundo lugar, que uma Bastonária de uma Ordem Profissional venha afirmar a mesma coisa sem ter provas concretas do que afirma demonstra uma tremenda irresponsabilidade e presta um péssimo serviço aos profissionais que deveria defender. Se assistiu a qualquer tipo de eutranásia escondida deveria tê-lo denunciado na altura. Se não o fez é tão negligente e criminosa como o autor.
Sou a favor da eutanásia mas não a qualquer preço.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Quatro anos, quatro parágrafos.

Cheguei. Três meses de "à condição", uma nova língua, uma nova cultura, uma nova organização. Ao fim dos três meses tinham dúvidas, afinal alguém com a minha experiência devia estar mais à frente (assim pensavam eles) e tive de explicar-lhes que, à excepção das técnicas e material tudo, mas tudo era diferente. Mais três meses à condição. Fiquei lixado, revoltado, trabalhei mais que os meus colegas que começaram no mesmo dia que eu... mas eu era o único não francófono.
Trabalhei ainda mais, seis meses passaram e depois um ano e fui aceite para fazer a especialidade. Dois anos. No primeiro dia pensei que ia estar atrás de toda a gente. Afinal era um percurso académico duro numa língua que ainda não dominava. Enganei-me. Modéstia à parte, fui mais longe e mais rápido do que toda a gente. Acabei nos prazos, rebentei com o júri na prova oral e senti-me orgulhoso do que tinha feito.
Três anos depois de ter chegado sou um dos especialistas do serviço e sou convidado pelos chefes a integrar a equipa dos enfermeiros chefes-de-equipa, aqueles que têm a função de coordenar toda a actividade relacionada com os doentes presentes no serviço de urgências assim como supervisionar a equipa de enfermeiros. Ultrapassei carradas de colegas que ainda estão à espera e as vozes de protesto não se fizeram esperar assim como os testes e desafios à minha competência e saber estar. 
Um ano depois disso estou bem na minha posição, os meus colegas respeitam-me enquanto colega e responsável, embora não recolha a unanimidade (e ainda bem!). Entretanto fui convidado para um outro curso, desta vez uma pós-graduação em avaliação e gestão da dor para vir a ser responsável pelo novo projecto "Gestão da Dor" que se iniciará no serviço em Junho deste ano. Novas vozes de desacordo que terei de calar.     
Olho para trás e penso que foi tudo tão rápido mas ao mesmo tempo já passaram mais de quatro anos. Olhando para trás percebo o porquê de quase ter deixado morrer este blog: andava na luta. Hoje estou num lugar bom e a única dúvida que me assola actualmente é qual o desafio a escolher a seguir!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

As férias da neve!

Semana de férias "da neve"! Nesta semana os miúdos vão ao curso de ski e eu aproveito para disfrutar a solo dos desportos de neve que me conquistaram desde que aqui cheguei: ski, snowboard, trenó e tudo o que implique subir uma montanha et escorregar por ela abaixo!
Claro que adoro o desporto em si, a velocidade, os músculos das pernas a arder nas rampas mais inclinadas e as quedas! Oh as quedas! A sensação de cair sem se magoar (muito!) e a neve que nos entra pelo pescoço. Mas há mais que adoro nestes dias de neve e montanha, mesmo que não haja sol. As paisagens que desfilam quando subimos, um cafézinho na esplanada mais alta com vista para os vales, o lanche com os miúdos todos sentados num monte de neve observando as pessoas que descem graciosas. Isso tudo sim. Mas sobretudo adoro o momento, todos os momentos que que chego ao ponto mais alto da pista mais alta e olho em meu redor. Os picos que não acabam, um mais alto que o outro, a brisa da montanha e o ar puro. Sinto que é nesses momentos em que tenho espaço para respirar, onde o ar é tão leve que me entra por todos os poros. Fico um momento e depois, depois é montanha abaixo, o mais rápido que consigo, o ar a gelar-me as bochechas, o nariz e os lábios, as pernas a arder tentando manter-me colado à montanha, chegar ao fundo das pistas... olhar para cima e... repetir!





domingo, 21 de fevereiro de 2016

Liberdade

Acabo de apagar a minha conta Facebook.
Back to business aqui no blog? É o que desejo, é o que desejo...

domingo, 27 de setembro de 2015

Gwendollin

Vejo-a chegar ao fundo do corredor. Quer dizer, não a vejo directamente, antes a imagino deitada na maca da ambulância rodeada pelo médico e os paramédicos que não escondem  a apreensão que os atormenta. Na sala de reanimação vejo-a finalmente, pequenina, 2 meses de vida que provavelmente nem disfrutou, olhos fechados como se dormisse mas sem a serenidade dos bébés que dormem. Isto foi só um momento antes de ser engolida pelas batas brancas que a esperavam... Vejo um dos meus colegas a poisar dois dedos no seu pequeno peito e a pressionar, ritmicamente como se a quisesse acordar, dois dedos apenas num peito que não se mexe, outro dos meus colegas que procura uma veia, ume pequena veia para estabelecer uma linha de vida. O médico que se deslocou a casa dela anuncia cerca de 25 minutos desde que o pai a encontrou serena na sua cama mas não recebeu o sorriso do costume, 25 minutos sem vida.
Os pediatras falam entre si, anunciam ordens para medicamentos e soros que os enfermeiros tentam executar o mais rápido possível mas eu só tenho olhos para o pai. O pai, aquele olhar perdido e vazio, aquele olhar de quem sabe que a sua menina partiu e já não volta. Mas ao mesmo tempo aquele olhar de quem espera ouvir a sua menina chorar a qualquer momento. E o silêncio... trabalhamos sempre no mais absoluto silêncio quando reanimamos uma criança. E o sentimento de podermos estragar a situação se perturbarmos o silêncio... Não a vejo, só as suas pequenas pernas que nem sequer andaram e elas estão tão negras, e eu parece-me ver a morte a apoderar-se daquele corpo pequenino, introduzindo-se por entre todas aquelas batas brancas. E o pai viu o mesmo que eu e uma lágrima correu lentamente pela sua face. 
Chegam os primeiros resultados do sangue, confirma-se o que todos já sabíamos. Vejo a pediatra-chefe olhar para o pai. Aquela médica, alta, loira, pele branca e olhos azuis uma cópia daqueles anjos renascentistas dos pintores italianos dirige-se ao pai e sorri tristemente. O pai percebe e as lágrimas rolam agora livremente pela sua cara, pela barba ruiva despenteada pelas mãos inquietas, olhos vermelhos. Sim, ele sabe que fizemos o que nos foi possível. Levanta-se da sua cadeira, as batas brancas afastam-se da maca e mostram-na, tão pequenina, tão desprotegida. O pai aproxima-se por entre aquela guarda de honra de médicos e enfermeiros, aqueles que não conseguiram salvar a sua menina e pega-a nos seus braços, protege-a com o seu peito, beija-lhe a face e as mãos e o peito. E chora. 
Eu saio, o sofrimento daquele pai atinge-me e sinto que não tenho o direiro de assistir a um momento tão intimo entre pai e filha. O último momento. 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Anjo...

O Mário, brasileiro, de férias na Suíça ainda ontem fez ski com um amigo. Apanhou com a esposa o comboio em Genebra, direção Zurique para apanhar um voo, direcção Londres para 3 dias de passeio. Subitamente o Mário sentiu uma dor abdominal que o fez abandonar o comboio em Lausanne e, numa ambulância chegar até nós, num dia particularmente agitado e ocupado.
Chegado ás urgências, os primeiros exames foram feitos, nada nas análises e um electrocardiograma normal. Mas muitas dores na barriga...
Passei por acaso no sector onde o Mário se encontrava e chamou-me a atenção aquele "português com açúcar" com que a esposa do Mário tentava fazer-se entender: "O meu marido não está bem, ele está a sofrer" em vão, para uma colega que tentava explicar-lhe, também em vão que os exames estavam normais e que restava esperar que os medicamentos fizessem efeito. Fui lá.
O Mário tinha mesmo muitas dores no estômago, mas fiz o meu exame e tudo apontava para uma gastrite pelas quais, me dizia o Mário, era conhecido. Não servia de nada estar à espera de um cardiologista se o problema era no abdómen. Chamei a médica-chefe do serviço, expliquei-lhe a situação, ela veio e concordou comigo: um problema abdominal, provavelmente uma gastrite. Tratei o Mário com morfina para as dores, uma coisinha para a acidez do estômago e primpéran para os vómitos e transferi o Mário para as urgências de cirurgia para fazer uma TAC ao ventre. Ao ir-me embora, a esposa do Mário perguntou-me o nome e disse-me: obrigado, foste um anjo que cruzou o nosso caminho neste país estrangeiro. Agradeci e fui à minha vida...
Uma hora mais tarde fui ver o Mário e lá estava ele, sorridente a dizer-me como se sentia melhor e a agradecer-me por o ter ajudado. Não fiz nada de mais, só o meu trabalho.
Estava no corredor da urgência de cirurgia quando ouvi o alarme de reanimação a tocar, o sinal indicava "box z". Onde estava o Mário. Corri para lá, um médico fazia massagem cardíaca, atrás de mim outros vieram. Vi a sua esposa num canto a chorar e fui vê-la: "É grave Miguel? Tanta gente com o meu Mário, tenho a certeza que é grave!".... fiquei com ela alguns minutos.
Na sala de reanimação a azáfama do costume: intubação, colegas a massajar o coração os médicos a debitar ordens e medicamentos para passar. E eu a torcer pelo Mário como há muito não torcia por um doente.
Saí que a vida não para mesmo se o Mário assim o tenha feito e há outros doentes para ver, outros para tentar salvar. Segui as coisas de longe, através do ecran do sistema de serviço e 40 minutos depois o dossier eletrónico do Mário marcava... óbito. Fui vê-lo e ainda antes de ir ver a sua esposa, parei para conversar com a chefe do serviço: o nosso exame fora correcto? haveria algo mais que poderíamos ter feito? algo do que foi feito foi prejudicial para o Mário? Não... os tempos foram respeitados, os enfermeiros e os médicos fizeram o que lhes competia, nada fazia prever este desfecho. Mas isso não muda o meu sentimento de perda, de derrota, de frustração.
Fui ver a mulher do Mário, brasileira que veio de férias com o seu marido, agora sozinha num país distante do seu, longe dos seus. E ao ver-me a senhora disse-me, de novo "foste um anjo que se cruzou no nosso caminho" mas eu não deixo de pensar que fui o anjo negro do Mário...

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Assim, do nada, a velhice à espreita.

Ontem tive a acompanhar-me no trabalho uma aluna do 3° ano de enfermagem. Nascida em... 1991.
Porra! Desde quando é que a malta nascida em 1991 já saiu da primária?!
Em 1991 eu era um jovem teen com a mania que era poeta. Vestia essencialmente preto, cinzento e toda a palete de cores entre estas duas e preocupava-me em memorizar e dar sentido as palavras cantadas (ou gritadas) de Kurt Cobain.
Sabem que álbuns foram editados em 1991? Eu digo, eu digo...

Nevermind dos Nirvana
Ten, Pearl Jam
Gish, Smashing Pumpkins
Trompe le Monde, Pixies
Black Album, Metallica
Achtung Baby, U2
Leisure, Blur
Blood Sugar Sex Magik, Red Hot Chilli Peppers
Use Your Illusion I, Guns n'Roses

Chega? Se alguém desse lado não foi marcado por pelo menos um destes discos é porque provavelmente também nasceu nos anos 90.

Estou velho pá.