Vi num dos episódios de "Grey's Anatomy" (sim, sim eu vejo uma série "de gaja" agora deixem lá isso) uma comparação entre uma ópera e uma cirurgia onde, em ambos os casos, tudo é cuidadosamente preparado e planeado tendo em vista um momento determinado em que a cortina se levanta para dar início ao espectáculo. De uma forma semelhante, o instrutor de um workshop sobre emergência e reanimação descreveu a reanimação ideal como uma orquestra: existe um maestro (o chamado "team-leader", normalmente o médico mais experiente no domínio dos cuidados de emergência) e depois os músicos, ou seja, os outros médicos, enfermeiros, auxiliares e todos os técnicos que possam intervir. Não é nada disso. Uma orquestra presume harmonia, tempo, organização, fluidez, sinfonia...
Esta semana participei numa das reanimações mais... digamos complicada, da minha carreira: senhora, 78 anos cai (atira-se?) do segundo andar (cerca de 10 m) e cai em cima de um carro estacionado na rua. O cenário de chegada é fácil de prever. O ritual do costume: os enfermeiros (eu portanto) são os primeiros a chegar, acendem as luzes da sala, ligam monitores e desfibrilhadores, preparam agulhas e seringas, tubos de sangue, compressas e ampolas de medicamentos. Os médicos vão chegando, assim como os técnicos de RX, os auxiliares. Sente-se a expectativa a aumentar à medida que se aproxima a hora de chegada anunciada e quase que só se ouve na sala o "tic-tac" do relógio que tudo vigia por cima da porta de entrada dos doentes. Sinto-me a aquecer por dentro mas não sei se é aquela blusa de papel verde a as luvas herméticas de latéx ou a adrenalina que sobe de intensidade. Tiro o dossier da gaveta e entretenho-me a organizar os papéis na secretária. Tudo o que é médico de um lado, o que é dos enfermeiros do outro e as requisições de análises e pedidos de sangue para transfusão previamente preenchidos e assinados. Ouve-se o helicóptero que aterra no tecto, mesmo por cima de nós...
A doente chega, os ânimos agitam-se, o cenário é pior que se pensava. Neste momento somos corredores à espera do sinal de partida, enquanto ouvimos o relatório do médico do helicóptero... terminou! Precipitámo-nos para cima da doente.
O líder grita ordens para o resto de nós: "vamos cortar as roupas da doente, transferimo-la para a nossa maca com a maca do heli e passamo-la depois para o nosso plano duro! Já!" nesta altura começo a cortar roupa e o meu colega procura uma veia para canalizar. Entendemo-nos bem nós os dois... a doente está pálida e fria e peço à auxiliar para nos trazer lençóis quentes. Cortamos tudo, os anestesistas monitorizam os sinais vitais, a coisa não está boa, tensão muito baixa, pulso muito alto, mau sinal, sinal de hemorragia. Temos acesso venoso mas não temos débito de sangue para analisar, um dos médicos está a tentar picar uma artéria mas não consegue, uma, duas vezes. A doente continua na maca do heli. "RAPAZES, É HORA DE PARAR COM AS BRINCADEIRAS E PASSAR A DOENTE PARA A NOSSA MACA, AGOORA!" Largamos tudo e fazemos como ele diz, rolamos a doente e a anestesista grita "A DOENTE PAROU, A DOENTE PAROU", massagem cardíaca iniciada. Instintivamente vou buscar os eléctrodos do desfibrilhador (aquelas pás que se vêm na TV já não se usam!) e colo-os no peito da doente, ligo o desfibrilhador, modo manual ligado, a máquina apita ao ritmo da massagem cardíaca "DESFIBRILHADOR PRONTO!" grito. Preparo-me para render o médico que massaga mas o líder diz-me: "vais buscar 4 unidas de sangue O negativo!", "4 unidades de O neg" respondo para confirmar que recebi a informação. E corro até ao depósito de sangue O neg que fica fora do serviço num corredor a caminho da morgue... estranha associação esta.
Chego com o sangue e... primeiro desafio! só utilizei a maquina que aquece o sangue enquanto o transfunde uma vez... foda-se já não me lembro.... na hora certa chega o chefe de equipa de enfermagem. Paramos um momento, olhamos para a máquina tentando isolar-nos do ambiente à nossa volta. Estudamos as tubagens e os encaixes e siga! O sangue começa a ser administrado "2 UNIDADES DE O NEG EM CURSO", "Seguimos para a TAC." Há sangue por todo o lado, na doente, nas máquinas, nas batas nas seringas.
Na TAC, transferimos a doente para a mesa da máquina depois de várias hesitações porque o fio é custo, porque o ventilador alarma, porque o sangue parou de correr. Enquanto a doente faz o vai-vem no túnel da TAC é tempo de um ponto de situação "a doente recebeu adrenalina, dormicum, propofol em curso assim como a noradrenalina. Há duas unidades de O neg em curso mais duas em stand-by...", "Ok. Precisamos de mais 4 unidades de sangue mais 4 de plasma fresco." É a nossa deixa. Cada vez que a máquina para entramos na sala para verificar que tudo corre como é devido mas é difícil identificar em que tudo corre o quê... merda! há ar no tubo do sangue e este não corre! Desconectamos tudo, tiramos o ar cá para fora e recomeçamos. Não corre, algo se passa. Trocamos tubos de sítio, paramos perfusões que fazem soar os alarmes, o ventilador não gosta de ter as tubagens dobradas mas lá encontramos o problema. A doente está pálida e fria.
Seguimos para os Cuidados Intensivos. Falta-me o dossier do doente e faltam-me dois sacos vazios de sangue (temos de os guardar durante 48 horas), alguém os deitou fora. Encontro papéis do dossier espalhados na sala da TAC e o resto do dossier está com um dos médicos. Chegamos á UCIinfusoras, tubos e sacos de soro, trocamos os fios dos monitores e entregamos a doente. Enquanto caminhamos de volta ao serviço, eu e o meu colega, apercebemo-nos que passaram duas horas! Ele tem a farda branca cheia de sangue e eu gozo com ele porque devia ter usado as quentes mas úteis batas verdes descartáveis. Estamos cansados mas com a noção que fizemos tudo certo, na hora certa.
Uma reanimação é como uma orquestra? Nã! É mais como o "mosh" num concentro de heavy-metal!
PS: a doente morreu mais tarde nesse mesmo dia...