Mas haverá melhor tema para regressar aos textos dignos desse nome, em vez de posts sobre os abdominais do CR7/9 e listas de Natal megalómanas, do que... cadáveres? Não. Um cadáver é uma pessoa, amemos o cadáver. Eu já vi, já mexi e já empacotei a minha dose de cadáveres. Uns com mais vontade outros com menos, uns com pesar e outros com uma estranha leveza, o que me levou a reflectir sobre o psicopata assassino que pode morar nas entranhas da minha mente. Mas nunca com indiferença. De todos os cadáveres com que já tive o prazer de privar (cá está a tal leveza...) houve dois particularmente marcantes: o primeiro, por razões óbvias e um com quem me cruzei nas Urgências de um hospital central da zona de Lisboa. Corria o ano de 2005...
Encontrava-me no Balcão de Mulheres, como sempre o mais movimentado ou não fossem as mulheres as nossas principais e mais fieis clientes, e os bombeiros trazem-me uma senhora deitada numa maca. Magra, nariz afilado e cabelo negro, apresentava-se pálida mas consciente. Não me lembro do nome mas trocámos algumas palavras. Tosse, febre, falta de forças em Novembro ou Dezembro logo me remeteram para algum tipo de infecção pulmonar. O médico enviou-a para o Rx. O tempo passou, os doentes também até que uma senhora me abordou: "Sr. Enfermeiro, a minha mãe não se está a sentir bem..."
"Desculpe?"
"A minha mãe, mandou-a fazer um Rx mas ela ainda não foi vista e não está a sentir-se nada bem."
"Mas... o que se passa?"
"Bom, ela simplesmente deixou de falar comigo..."
Acompanhei a senhora até ao corredor onde os pacientes esperam pela chamada para os exames e, assim que virei a esquina percebi o problema da doente. Um pálido translúcido, os lábios escuros, o olhar vazio, por mais que descreva um cadáver não é possível transmitir aquele aspecto... bom, aquele aspecto morto! No corredor, com dezenas de pessoas a circular, doentes e profissionais! Claro que não podia revelar o meu diagnóstico ali, no meio de tanta gente...
"Dª Fulana? Ó Dª Fulana, sente-se bem?.... Pois, não reage.... aguarde aqui que vou leva-la já para dentro! Vamos fazer um tratamento Dª Fulana!!" E, calmamente, empurrei o cadáver para a sala de reanimação, liguei-a ao monitor para observar aquela linha plana e continua que é, tão dramaticamente usada nos filmes e séries para marcar a morte do artista, e chamei o médico.
"O qu'é q'foi pá?"
"Doctor! A mulher foi-se."
"'Atão s'tá morta p'ra qu'é q'me chamas??" E retirou-se tão depressa como chegara. O cadáver ficou-me "nos bracinhos". E ali fiquei, a fazer tempo. Não podia sair logo e transmitir a notícia à filha, ela aperceber-se-ia de que pouco ou nada tinha sido feito e por isso, ali fiquei. Aproveitei aquele tempo morto (piada fácil, eu sei) para adiantar trabalho e fazer a verificação das máquinas e para repor material. Depois chamei o médico para que ele certificasse o óbito e transmitisse a notícia à família. E não, não me envergonho de ter passado a "batata quente"!
E pronto, mais uma história real do país real onde, por vezes as pessoas morrem nos corredores de hospitais enquanto esperam por exames. A sorte ainda vai sendo o facto de andarem por aí uns carolas enfermeiros!