domingo, 27 de setembro de 2015

Gwendollin

Vejo-a chegar ao fundo do corredor. Quer dizer, não a vejo directamente, antes a imagino deitada na maca da ambulância rodeada pelo médico e os paramédicos que não escondem  a apreensão que os atormenta. Na sala de reanimação vejo-a finalmente, pequenina, 2 meses de vida que provavelmente nem disfrutou, olhos fechados como se dormisse mas sem a serenidade dos bébés que dormem. Isto foi só um momento antes de ser engolida pelas batas brancas que a esperavam... Vejo um dos meus colegas a poisar dois dedos no seu pequeno peito e a pressionar, ritmicamente como se a quisesse acordar, dois dedos apenas num peito que não se mexe, outro dos meus colegas que procura uma veia, ume pequena veia para estabelecer uma linha de vida. O médico que se deslocou a casa dela anuncia cerca de 25 minutos desde que o pai a encontrou serena na sua cama mas não recebeu o sorriso do costume, 25 minutos sem vida.
Os pediatras falam entre si, anunciam ordens para medicamentos e soros que os enfermeiros tentam executar o mais rápido possível mas eu só tenho olhos para o pai. O pai, aquele olhar perdido e vazio, aquele olhar de quem sabe que a sua menina partiu e já não volta. Mas ao mesmo tempo aquele olhar de quem espera ouvir a sua menina chorar a qualquer momento. E o silêncio... trabalhamos sempre no mais absoluto silêncio quando reanimamos uma criança. E o sentimento de podermos estragar a situação se perturbarmos o silêncio... Não a vejo, só as suas pequenas pernas que nem sequer andaram e elas estão tão negras, e eu parece-me ver a morte a apoderar-se daquele corpo pequenino, introduzindo-se por entre todas aquelas batas brancas. E o pai viu o mesmo que eu e uma lágrima correu lentamente pela sua face. 
Chegam os primeiros resultados do sangue, confirma-se o que todos já sabíamos. Vejo a pediatra-chefe olhar para o pai. Aquela médica, alta, loira, pele branca e olhos azuis uma cópia daqueles anjos renascentistas dos pintores italianos dirige-se ao pai e sorri tristemente. O pai percebe e as lágrimas rolam agora livremente pela sua cara, pela barba ruiva despenteada pelas mãos inquietas, olhos vermelhos. Sim, ele sabe que fizemos o que nos foi possível. Levanta-se da sua cadeira, as batas brancas afastam-se da maca e mostram-na, tão pequenina, tão desprotegida. O pai aproxima-se por entre aquela guarda de honra de médicos e enfermeiros, aqueles que não conseguiram salvar a sua menina e pega-a nos seus braços, protege-a com o seu peito, beija-lhe a face e as mãos e o peito. E chora. 
Eu saio, o sofrimento daquele pai atinge-me e sinto que não tenho o direiro de assistir a um momento tão intimo entre pai e filha. O último momento. 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Anjo...

O Mário, brasileiro, de férias na Suíça ainda ontem fez ski com um amigo. Apanhou com a esposa o comboio em Genebra, direção Zurique para apanhar um voo, direcção Londres para 3 dias de passeio. Subitamente o Mário sentiu uma dor abdominal que o fez abandonar o comboio em Lausanne e, numa ambulância chegar até nós, num dia particularmente agitado e ocupado.
Chegado ás urgências, os primeiros exames foram feitos, nada nas análises e um electrocardiograma normal. Mas muitas dores na barriga...
Passei por acaso no sector onde o Mário se encontrava e chamou-me a atenção aquele "português com açúcar" com que a esposa do Mário tentava fazer-se entender: "O meu marido não está bem, ele está a sofrer" em vão, para uma colega que tentava explicar-lhe, também em vão que os exames estavam normais e que restava esperar que os medicamentos fizessem efeito. Fui lá.
O Mário tinha mesmo muitas dores no estômago, mas fiz o meu exame e tudo apontava para uma gastrite pelas quais, me dizia o Mário, era conhecido. Não servia de nada estar à espera de um cardiologista se o problema era no abdómen. Chamei a médica-chefe do serviço, expliquei-lhe a situação, ela veio e concordou comigo: um problema abdominal, provavelmente uma gastrite. Tratei o Mário com morfina para as dores, uma coisinha para a acidez do estômago e primpéran para os vómitos e transferi o Mário para as urgências de cirurgia para fazer uma TAC ao ventre. Ao ir-me embora, a esposa do Mário perguntou-me o nome e disse-me: obrigado, foste um anjo que cruzou o nosso caminho neste país estrangeiro. Agradeci e fui à minha vida...
Uma hora mais tarde fui ver o Mário e lá estava ele, sorridente a dizer-me como se sentia melhor e a agradecer-me por o ter ajudado. Não fiz nada de mais, só o meu trabalho.
Estava no corredor da urgência de cirurgia quando ouvi o alarme de reanimação a tocar, o sinal indicava "box z". Onde estava o Mário. Corri para lá, um médico fazia massagem cardíaca, atrás de mim outros vieram. Vi a sua esposa num canto a chorar e fui vê-la: "É grave Miguel? Tanta gente com o meu Mário, tenho a certeza que é grave!".... fiquei com ela alguns minutos.
Na sala de reanimação a azáfama do costume: intubação, colegas a massajar o coração os médicos a debitar ordens e medicamentos para passar. E eu a torcer pelo Mário como há muito não torcia por um doente.
Saí que a vida não para mesmo se o Mário assim o tenha feito e há outros doentes para ver, outros para tentar salvar. Segui as coisas de longe, através do ecran do sistema de serviço e 40 minutos depois o dossier eletrónico do Mário marcava... óbito. Fui vê-lo e ainda antes de ir ver a sua esposa, parei para conversar com a chefe do serviço: o nosso exame fora correcto? haveria algo mais que poderíamos ter feito? algo do que foi feito foi prejudicial para o Mário? Não... os tempos foram respeitados, os enfermeiros e os médicos fizeram o que lhes competia, nada fazia prever este desfecho. Mas isso não muda o meu sentimento de perda, de derrota, de frustração.
Fui ver a mulher do Mário, brasileira que veio de férias com o seu marido, agora sozinha num país distante do seu, longe dos seus. E ao ver-me a senhora disse-me, de novo "foste um anjo que se cruzou no nosso caminho" mas eu não deixo de pensar que fui o anjo negro do Mário...