terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Anjo...

O Mário, brasileiro, de férias na Suíça ainda ontem fez ski com um amigo. Apanhou com a esposa o comboio em Genebra, direção Zurique para apanhar um voo, direcção Londres para 3 dias de passeio. Subitamente o Mário sentiu uma dor abdominal que o fez abandonar o comboio em Lausanne e, numa ambulância chegar até nós, num dia particularmente agitado e ocupado.
Chegado ás urgências, os primeiros exames foram feitos, nada nas análises e um electrocardiograma normal. Mas muitas dores na barriga...
Passei por acaso no sector onde o Mário se encontrava e chamou-me a atenção aquele "português com açúcar" com que a esposa do Mário tentava fazer-se entender: "O meu marido não está bem, ele está a sofrer" em vão, para uma colega que tentava explicar-lhe, também em vão que os exames estavam normais e que restava esperar que os medicamentos fizessem efeito. Fui lá.
O Mário tinha mesmo muitas dores no estômago, mas fiz o meu exame e tudo apontava para uma gastrite pelas quais, me dizia o Mário, era conhecido. Não servia de nada estar à espera de um cardiologista se o problema era no abdómen. Chamei a médica-chefe do serviço, expliquei-lhe a situação, ela veio e concordou comigo: um problema abdominal, provavelmente uma gastrite. Tratei o Mário com morfina para as dores, uma coisinha para a acidez do estômago e primpéran para os vómitos e transferi o Mário para as urgências de cirurgia para fazer uma TAC ao ventre. Ao ir-me embora, a esposa do Mário perguntou-me o nome e disse-me: obrigado, foste um anjo que cruzou o nosso caminho neste país estrangeiro. Agradeci e fui à minha vida...
Uma hora mais tarde fui ver o Mário e lá estava ele, sorridente a dizer-me como se sentia melhor e a agradecer-me por o ter ajudado. Não fiz nada de mais, só o meu trabalho.
Estava no corredor da urgência de cirurgia quando ouvi o alarme de reanimação a tocar, o sinal indicava "box z". Onde estava o Mário. Corri para lá, um médico fazia massagem cardíaca, atrás de mim outros vieram. Vi a sua esposa num canto a chorar e fui vê-la: "É grave Miguel? Tanta gente com o meu Mário, tenho a certeza que é grave!".... fiquei com ela alguns minutos.
Na sala de reanimação a azáfama do costume: intubação, colegas a massajar o coração os médicos a debitar ordens e medicamentos para passar. E eu a torcer pelo Mário como há muito não torcia por um doente.
Saí que a vida não para mesmo se o Mário assim o tenha feito e há outros doentes para ver, outros para tentar salvar. Segui as coisas de longe, através do ecran do sistema de serviço e 40 minutos depois o dossier eletrónico do Mário marcava... óbito. Fui vê-lo e ainda antes de ir ver a sua esposa, parei para conversar com a chefe do serviço: o nosso exame fora correcto? haveria algo mais que poderíamos ter feito? algo do que foi feito foi prejudicial para o Mário? Não... os tempos foram respeitados, os enfermeiros e os médicos fizeram o que lhes competia, nada fazia prever este desfecho. Mas isso não muda o meu sentimento de perda, de derrota, de frustração.
Fui ver a mulher do Mário, brasileira que veio de férias com o seu marido, agora sozinha num país distante do seu, longe dos seus. E ao ver-me a senhora disse-me, de novo "foste um anjo que se cruzou no nosso caminho" mas eu não deixo de pensar que fui o anjo negro do Mário...