quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Conto de um Homem Só: Maryusz.

Todos no serviço o conhecem. Os das ambulâncias também. Afinal Maryusz é um dos nossos clientes mais frequentes. Alto e magro, olhos de um azul profundo embaciado pelo àlcool que lhe dilui o sangue. Acho que nunca ninguém o viu sóbrio, só menos alcoolizado. Mas Maryusz não é agressivo. Normalmente é trazido pela ambulância porque alguém o encontrou inconsciente numa esquina qualquer de Lausanne. Faça frio ou faça sol, Maryusz bebe até perder a consciência. E bebe tudo, inclusivé o àlcool que utilizamos para desinfectar as mãos no hospital. Já tentámos de tudo para ajudar este homem, mas parece que beber até morrer é a sua missão na vida. 
De vez em quando, no frio do inverno, Maryusz aparece na nossa sala de espera. Bêbado mas correcto, procura apenas um lugar para se aquecer. Traz consigo toda a sua vida: uma mochila com bebida e a sua gaita de beiços. Senta-se num canto e começa a tocar. A melodia sai perfeita e envolve todos na sala e toca-nos bem no fundo de nós. As notas são carregadas de sentimento, a melodia é bela e límpida mas carregada de tristeza e de nostalgia, de sofrimento e angústia. De saudade. Ao observar Maryusz tocando a sua gaita num canto da sala, olhos fechados em esforço e, enrolado sobre si mesmo como só os doentes com muita dor o fazem, percebo que há mais acerca deste homem do que aquilo que temos á vista. 
Certo dia Maryusz chega como em tantas outras vezes, numa maçã de ambulância inconsciente e frio. Nesta como em tantas outras vezes Maryusz lá fica a curar a sua bebedeira num canto das urgências. Quando acorda Maryuz chora. Foi a única vez que o vi sóbrio e a única vez que ouvi a sua história.
O meu nome é Maryusz e sou polaco. Nos ultimos anos tenho vagueado pela Europa para esquecer. Bebo para não me lembrar, bebo para dormir. Quando estou sóbrio não suporto a dor e por isso nunca mais o quis estar, pois sóbrio lembro-me deles, da minha família. Vivíamos em Varsóvia onde eu era professor de música no conservatório nacional. Eramos felizes os quatro, eu a minha bela mulher e os nossos dois meninos de 4 e 7 anos. A vida sorría-nos. Até que num normal dia de inverno, ao regressarmos a nossa casa nos subúrbios da cidade tivemos um acidente. Eu saí do carro ileso mas só eu. Abracei os meus meninos, tão frios e pálidos que estavam. Tentei aquecê-los com o meu calor mas eles nunca regressaram para mim, Beijei a minha mulher e abracei os meus filhos mas as minhas lágrimas congelaram. E o meu coração também.
Há poucas semanas Maryusz foi encontrado também ele gelado e pálido mas, segundo os tripulantes da ambulância no local, foi a única vez que viram um sorriso na cara de Maryusz.


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Conto de Um Homem Só

A sua vida era calma e pacata naquela aldeia plantada no sopé dos Alpes. Agricultor uma vida inteira, mulher, três filhos, uma cerveja com os amigos no fim do dia, a igreja ao domingo. Os habitantes da povoação estimavam-no por ser sempre prestável e tinham-se já habituado ao ser carácter reservado e de poucas falas, por oposição à frenética atitude dos outros homens da terra, sempre ansiosos por ser o mais homem de todos. 
Sentia-se cansado. Fisicamente cansado, a labuta diária nos campos e colheitas era dura normalmente mas nada justificava a sua falta de energia. Febre algumas vezes à noite e falta de apetite. A sua mulher, zelosa, dizia-lhe para ir ao médico de família mas ele, não, que ia melhorar, afinal já há mais de um ano que não vamos de férias e isto com uns ben-u-ron's vai ao sítio. Mas o cansaço não o larga, cada vez mais cansado, sem apetite, a perder peso. Finalmente rende-se à evidência e consulta o seu médico de uma vida inteira.
Análises ao sangue, uma radiografia aos pulmões, a tensão e a respiração perfeitamente normais. Isso é cansaço normal, afirma o médico que atribui as queixas do seu doente à falta de uma férias bem gozadas, afinal conhece o homem desde pequeno e a sua saúde é de ferro. O homem abandona o consultório do médico com uma vitaminas e uma receita para tirar umas férias com a mulher e sem os filhos o mais rápidamente possível. 
Numa manhã como qualquer outra anuncia à sua esposa, vou à cidade tratar de uns assuntos, e sai dando um beijo na face da mulher. Dirige-se ao hospital, gabardine longa, chapéu e óculos de sol. A sua postura é a de alguém que não quer ser reconhecido. Detém-se um momento observando as indicações para as diversas consultas disponíveis, dirige-se a uma sala de espera tira uma senha e aguarda de pé. Bom dia, diz a enfermeira, qual é o teste que deseja efectuar? SIDA, ouve o homem sair da sua boca a palavra que ele mais teme. Primeiro teste positivo, segundo teste de controlo positivo. 
A enfermeira começa a enunciar todos os avanços feitos no domínio, taxas de sucesso, tipos de tratamento mas a sua mente está ocupada. Positivo, positivo, positivo, positivo, positivo... Não se lembra de regressar a casa.
Nessa mesma tarde decide finalmente abrir-se com a sua companheira de tantos anos. Não sou quem tu pensas. Não te mereço a ti nem aos nossos filhos e muito menos o amor que me dão. Durante anos fui um cobarde. Todas as noites que não dormi em casa passei-as com outros homens. Homens que não conheço, homens sujos que encontrava em bares e hoteis. Sou paneleiro, sempre o fui, desculpa. Tentei refugiar-me disso no trabalho, na igreja, nos miúdos, em ti... Mas fui fraco. E agora, além de fraco estou infectado e sujo também eu. Quero arrancar a minha pele, quero esvaziar-me deste sangue infecto, arrancar com as minhas mãos esta coisa que me consome. Mas sempre fui um reles paneleiro que se deixa seduzir pelo apelo da carne de outros homens. Um fraco, um paneleiro qualquer... Não mereço viver. Cuida de ti e dos nossos filhos. Vivi cobarde, morro como um homem. Leu a sua mulher quando o encontrou mergulhado no seu próprio sangue e uma pistola na mão.


Romanceado a partir de uma história verídica.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

-Então como vai o nosso doente?
-Melhor. Clinicamente está estável mas ainda não fala. Não disse nada depois da reanimação, será uma manifestação neurológica?
-Ou isso ou então não tem nada para dizer...

terça-feira, 1 de outubro de 2013


- Temos um pulso!
- Sim, por agora vive... Veremos se os nossos esforços fizeram alguma diferença. 
- Ainda é jovem, vai safar- se!
- Veremos...

domingo, 1 de setembro de 2013

Ponto final.

"AVISO: Este blog será mantido durante as horas que passo nos serviços (são dois, Às vezes mais...) por isso, na prática estarei a ser pago (imaginem lá por quem!!!) enquanto estiver aqui a escrever patacoadas!!!
Nunca a expressão irada de um utente descontente "Ouça lá, sou eu que lhe pago o ordenado seu..." teve tanta razão de existir (doce vingança!).
Mas olhem, já que me estão a pagar, disfrutem e visitem este novíssimo serviço de saúde (patológico) e não se esqueçam de utilizar o livro de reclamações (comentar vá.)

PRÓXIMOOOOO!!"

Este foi o primeiro texto publicado no (longínquo) dia 20 de Novembro de 2008. Lançou as premissas do blog e ilustrava bem a realidade na qual eu vivia na altura. Mas isso foi numa outra vida....
Há meses e meses que o sei e vocês também o sabem: o éter evaporou-se todo e já não há mais cheirinho!
Por muito que eu goste deste blog (e como gosto) e por muita importância que ele tenha tido na minha sanidade mental (que teve!) numa época difícil da minha vida, já não há espaço para ele na minha realidade de hoje. Nem as suas premissas lançadas no seu primeiro texto são as mesmas.


Enfim, foi uma aventura fantástica, obrigado por a partilharem comigo!

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Ramadão

Ora bem, cá está ele, um período que em Portugal me passava completamente despercebido mas que agora é bastante evidente: o Ramadão.
Com a quantidade de colegas muçulmanos com quem trabalho é impossível não nos aperceber-mos. Hoje estou a fazer a noite e a nossa preocupação é uma colega de origem turca cujo limite para comer são as 3h35. Um quarto para as 4 da matina é o nascer do sol para os muçulmanos?! Agora pensem que estamos no Verão e a que horas o sol se põe e façam as contas a quantas horas de "noite" sobram para comer. E é muito bom falar com estas pessoas e saber que a maioria dos muçulmanos não são terroristas sanguinários kamikazes. É gente que se farta do ramadão, gente que quebra as regras e que dá uma dentadinha após o nascer do sol, gente que na verdade nem se importa muito de não comer, mas mais com o facto de não poderem ir tomar banho ao lago, não poder andar de mini-calções e t-shirt cavada, fumar e beber uma cerveja fresquinha.
É gente que tenta levar o ramadão até ao fim mas que desiste ao fim de duas semanas porque, afinal sim, Alá e o Corão são sagrados mas também não é preciso exagerar!

sábado, 15 de junho de 2013

E de repente, ao sair de um bosque...

Uma bela surpresa no meio dos Alpes. Magnifico!

quarta-feira, 12 de junho de 2013

ZZZZZZZ

Almoço e a seguir uma sala quente, um curso bem teórico e um orador monocórdico. Não há quem aguente. 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

No Metro Parisiense

Não deixo de observar o que se passa à minha volta quando estou sozinho na rua. Neste caso no metro de Paris. 
Apesar de não conhecer todos os metros de todas as grandes cidades atrevo-me a afirmar que, a julgar pelo número de mulheres e homens (ok, são principalmente as mulheres o objecto da minha observação) elegantes e chiques nestas carruagens este deve ser o metro mais elegante do mundo!

Banhadas

Estou neste momento numa conferencia do congresso da Sociedade Francesa de  Medicina de Urgência, em Paris. E hoje tem sido só banhadas. Além disso queria imenso assistir à conferencia sobre os traumatismos desportivos mas pelos vistos era eu e metade do resto dos conferencistas pelo que não consegui entrar. Era isto. 
 

sábado, 1 de junho de 2013

Os meus intestinos revoltam-se.

Um gajo sabe que começa a ser importante num serviço quando lhe dão um telefone de serviço! Foi o que me aconteceu hoje, mas isso só significa mais responsabilidade.
No caso em estudo o que aconteceu foi que comecei a triar. A triagem dos pacientes que se apresentam na Urgência é algo de muito importante principalmente pelo doente mas também porque as nossas decisões vão influenciar tudo o que se passa a partir do momento em que o doente é admitido. Se em Portugal a maioria dos sistemas instalados são baseados em algoritmos que ajudam quem tria a chegar a um grau de urgência e, por consequência a decidir se o doente pode ou não esperar para ser visto, por estes lados existe uma lista de "motivos de admissão" com uma indicação do grau de urgência a que cada motivo corresponde. O problema é que são cerca de 100 motivos, a maioria com vários graus de urgência associaodas e com vários destinos possíveis. 
Resumindo, a eficácia da triagem está muito ligada ao sentido clínico e à competência de quem tria... No que diz respeito ao doente, o doente que chaga muito mal é facilmente identificado e o que vem por coisa nenhuma também. O problema está em todos os doente no meio destes dois extremos. Há aqueles que, apresentando-se numa Urgência não nos dão informação nenhuma e os outros que dão demasiada. Depois é o problema da orientação. Saibam que aqui posso enviar doentes para 4 locais diferentes com médicos diferentes e com chefes diferentes. O que quer dizer que, se não queremos ser chateados temos que estar muito certos das nossas acções! Os colegas que fazem isto há mais tempo dizem que quanto mais triar mais fácil se vai tornar e eu acredito. O problema é que mesmo eles metem as patas de vez em quando.   
De facto, receber um doente que vem da rua com um problema de maior ou menor grau, colocar-lhe questões para tentar identificar o problema quando para eles o problema é evidente e depois pegar nisso tudo e tomar uma decisão que vai mexer com as acções de muitos mais profissionais é um grande desafio e uma enorme responsabilidade... mas (embora hoje, o meu primeiro dia de triagem completamente sem paraquedas, esteja com o rabinho bem apertadinho de medo!) é pegar o touro pelos cornos! De qualquer das formas, esta nova responsabilidade que me foi atribuída significa que estou a avançar dentro da equipa e isso é bom!
Desejem-me sorte a ver se não mato algum OK?

Actualização das 22h45, hora Suíça: acabo de meter as patas por causa do chamado "efeito Túnel": um gajo agarra-se a um aspecto muito específico de toda a situação da pessoa e acaba por não ver que a resposta às suas questões está mesmo à sua frente. Continua assim Miguel que vais bem e ainda faltam 8 horas para o fim do turno.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Quem se lixou foi o gato. Coitado...

Isto de se ser um país rico e cheio de recursos não tem só coisas boas. Os drogados por exemplo: todos são considerados "inimputáveis" no sentido em que o Estado considera que não apresentam competências para serem livres de tomar as suas próprias decisões e, vai daí, são considerados "inválidos". Consequência: recebem todos os meses uma pensão de sobrevivência que lhes alimenta o vício. Comem e dormem em instituições de abrigo aos necessitados e passam o dia nas ruas. Com dinheiro que recebem no dia 1 de cada mês (é vê-los na fila dos correios às 6 da matina!), comida e caminha feita, qual é o incentivo para largar o vício? Nenhum, pois claro! A mesma merda com os bêbedos.
Pois eis que numa noite me aparece uma senhora de uns 50 anos podre, mas podre de bêbeda. Ok, noite a roncar, acorda de manhã e deixamo-la partir, isto por volta das 9. Volto nesse mesmo dia para trabalhar a noite e eis que reencontro a personagem ainda no hospital. Pelos vistos a senhora tinha mesmo saído nessa manhã às 9 mas voltou às 10h30 ainda mais bêbeda do que na noite anterior. Ora foda-se.
Às 20h a fulaninha ainda toda queimadinha do álcool, tremendo, a andar aos "ss" e com um hálito de adormecer um touro desses que fugiram em Viana do Castelo insistia em querer partir. Mas, sem ninguém para a vir buscar e habitando a mais de duas horas de viagem do hospital, sair estava fora de questão. Eis que a senhora saca da seguinte história: tenho de voltar para casa porque tenho o meu gato que está doente e se não lhe der a medicação ele morre. Para não variar, não tem ninguém que possa ir ver do gato e os vizinhos não o podem fazer porque a porta está fechada. Claro que o médico não alinha na história e assim a senhora é obrigada a ficar hospitalizada. Segue-se a chantagem: eu processo esta merda toda se o meu gato morrer e, se isso acontecer a culpa é toda vossa.
Ora que porra! Então agora a culpa da estupidez dela é nossa? Depois de uma hora a ouvir impropérios e acusações salta-me a tampa:
-"Ouça lá! Que culpa é que nós temos que tenhas apanhado o pifo ontem à noite? Fomos nós que a obrigamos? E depois de ter passado a noite no hospital ainda foi emborcar uma garrafa de vodka às 9 da matina?! (a resposta: foi um amigo que a convidou para festejar a saída dela do hospital e ela não o quis deixar ficar mal...) Então nesse caso culpe o seu amigo! Mas na verdade a única culpada nesta história és tu e se o desgraçado do gato morrer então a culpa é só tua.".
O certo é que, por se sentir culpada ou por ter percebido que daqui não levava nada, a fulana roncou toda a noite e não disse nem mais uma palavra!

(não sei se havia gato ou não mas este tipo de "doentes", tenho um bocado de dificuldade em os classificar como tal, é muito manipulador e mentiroso. De qualquer das formas, no estado em que ela estava duvido que se lembrasse da existência do dito gato, quanto mais de lhe dar um comprimido.)  

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Cá vamos nós...

(aviso: eventuais colegas que trabalhem em Cuidados Intensivos ou pessoas interessadas nesse domínio da saúde, o texto que se segue pode irritar-vos ou destruir as vossas ilusões, dependendo do grupo onde se encontram. Ficam avisados.)

Ora bem. Já aqui escrevi sobre a velha "disputa" entre as Urgências e os Cuidados Intensivos. Acontece que acabo de sair de um estágio de 3 semanas nos Intensivos e devo dizer-vos uma coisa: mas que grande seca! Irra que nunca mais acabava o raio do estágio...
Comecemos então a destruir mitos. Em Cuidados intensivos um enfermeiro dedica vá, uns 70% do seu tempo a carragar em botões de máquinas, 25% a esvaziar sacos e drenos e 5% a tratar do pacinete. e estou a ser simpático! Ah e tal porque são pacientes altamente instáveis e não sei quê, dir-me-ão vocês. Eu explico: apesar desse facto que reconheço, um doente em Cuidados Intensivos está 24/24h monitorizado com valores biológicos em tempo real, tem canos enfiados em veias centrais e arteriais, algália, um tubo na garganta e uma máquina que respira por ele. Ou seja, ainda o doente não sabe que vai descompensar, já as máquinas estão a apitar! Como o médico quase que dorme ao pé do doente...
Ah e tal e as máquinas todas e os tubos enfiados em tudo o que é orifício natural ou artificial? Ok, as máquinas e tal... vejamos: o ventilador são 3 ou 4 modos de ventilação. Aquilo é um bocado como um iPhone, tem milhares de aplicações mas só usamos aquilo para chamadas, mensagens e ir ao Facebook.
Uma circulação extra-corporal (uma máquina que suga o sangue do corpo e substitui os coraçáo e/ou os pulmões) é impressionante principalmente quando sabemos que está um tubo do diâmetro do meu indicador ás portas do coração do doente e que é uma máquina que faz de coração e/ou de pulmões mas, do ponto de vista do enfermeiro as acções limitam-se a vigiar e se aquilo apitar a chamar o Dr. especialista da coisa. Ou seja, é não mexer para não estragar. O famoso (entre os profisionais de saúde claro) Swann-Ganz é (mais um) tudo enfiado na jugular que atravessa todo o coração até quase ao pulmão mas que, mais uma vez, do ponto de vista do enfermeiro se treaduz apenas por anotar os valores que aquilo dá notificar se eles saírem da norma prevista. E podia continuar...
Resumindo, o enfermeiro em Cuidados Intensivos vigia, anota valores, despeja sacos e drenos, anota mais valores e entretêm-se a desentralaçar tubos e fios que aquilo entre os tubos enfiados nos buracos, os tubos dos trinta medicamentos que correm ao mesmo tempo e os fios das máquinas todas á volta, é um matagal que quase não se encontra o doente!
Ou seja, imaginem um lindo e reluzente Ferrari (um modelo qualquer que eu não sou esquisito!), topo de gama, tecnologia de ponta, aparelhagem sofisticadíssima e complicada e a vossa função é verificar a pressão dos pneus, o nível do óleo e assegurar que não aparece por ali nenhum vandalozinho que vá riscar a pintura daquilo.


(Eu avisei.)

segunda-feira, 20 de maio de 2013

3 meses é capaz de ser muito tempo...

... mas no ritmo actual da minha vida é um instante!
Vejamos: 41 horas de trabalho semanal repartidos entre turnos de 12 horas e as aulas da especialidade. Em casa, os putos que não param de crescer transformando-se em piratas que saqueam o que resta do meu tempo (e da minha energia) deixando apenas um pouco de espaço de vida conjugal depois das 21h. O problema é que, a essa hora, estou completamente exausto para tudo o que implique vida conjugal (nas suas mais variadas vertentes). As minhas corridinhas que tanto estimo e adoro ficam para segundo plano. Resultado: 4 quilos a mais (foda-se) e muito menos energia da boa. 
Maio tem sido o mês do Diabo: 3 semanas em estágio nos Cuidados Intensivos (quem segue este blog desde o início sabe que a minha relação com os intensivos não é a melhor!), uma semana de 
formação para subir mais uma escadinha no serviço (qualquer dia sou um gajo importante), o exame do primeiro semestre no dia 27 (ai, só falta uma semana!).
Resumindo, meus caros leitores, os poucos que ainda restam e suportam esta ausência de actualizações, meus caros amigos blogosféricos vocês estão sempre (quer dizer, muitas vezes) no meu pensamento mas a minha agenda não dá para tudo!
Até breve.

Miguel 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Porque a estupidez não conhece fronteiras.

Toca um dos (5 ou 6) telefones do serviço. Atendo.
- Bom dia. Gostaria de obter informações acerca da Dona Maria Abertina por favor.
- Com certeza. A Dona Albertina está bem, estável, e estamos à espera que a chamem para fazer a endoscopia.
- Quer dizer que não fizeram nada durante a noite?
E aqui, numa fracção de segundo a resposta que me passou pela cabeça foi:
"Claro que não fizemos nada minha senhora. Apesar de a D. Albertina estar com a hemoglobina nas lonas depois de sangrar pelo cú durante dois dias e chegar aqui completamente podre nós limitámo-nos a olhar para ela toda a noite, na esperança que ela se estabilizasse como por auto-regeneração ou por algum tipo de intervenção divina. Por obra do acaso ou mera sorte, a doente conseguiu subir a sua hemoglobina assim como a sua tensào arterial e agora está porreira à espera do tal exame que julga tão importante."
Felizmente ainda tinha o filtro mental activado de maneiras que acabei por responder:
"De todo minha senhora, a D.Albertina já recebeu 4 unidades de sangue que lhe permitiram resolver a sua anemia assim como vários litros de soro e um medicamento para diminuir a hemorragia gástrica por isso acho que já fizemos alguma coisa."
-Ah... então e o exame?

(Ando eu aqui a gastar o mau francês...)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Ao que parece, não teve uma infância fácil. Ela, que foi ele numa outra vida, saiu de casa num dia como os outros, na mala a tiracolo levava um acessório que lhe iria mudar o futuro. Pensou longamente onde haveria de deixar a sua declaração ao mundo e decidiu que não haveria lugar melhor que o lugar onde nunca a compreenderam. Fechou a porta, apanhou o metro.
Entrou no hospital complemtamente despercebida, tão ignorada, tão apagada, tão esquecida como se sentia por dentro. Soube que tinha escolhido bem o local para sua última consulta. Subiu ao sétimo andar, Consulta de Psiquiatria, abriu a mala, alisou a carta que deixou para o mundo, tirou a corda que comprou para aquele momento e começou a preparar-se. Naquele momento alguém reparou naquela mulher que fixava uma corda na varanda da escadaria. Logo naquele momento, em que queria passar despercebida, alguém finalmente a viu. Colocou a corda ao pescoço e subiu para o muro.
Logo chegaram todos, ao lado dela, na varanda aqueles que nunca a conseguiram entender, aqueles que nunca a viram a tentarem convencê-la a descer. Que irónico, a pedirem-lhe por favor para reconsiderar. Nunca se sentira tão certa na sua vida, nem quando era ele e muito menos depois de ser ela. Via o pânico na cara do psiquiatra, a impotência na cara de alguém que era suposto ter a resposta para tudo... Em baixo, no rés-do-chão, policia e bombeiros e mais médicos e enfermeiros prontos para a salvar. Mas porquê agora? A salvação tinha ficado para trás havia muito tempo. Pensou como era engraçada aquela situação: todos iriam vê-la morrer quando nunca ninguém a tinha visto viver.
Sorriu, saltou. Os dois psiquiatras precipitaram-se para ela mas só agarram a corda. A vida não é um filme, não existem heróis. Eles não conseguiram segurar a corda, ela não foi salva no último instante. Só uma sombra a cair alguns andares e um som seco e rápido. Um som que tanto pode ter sido a corda a estalar, a coluna dela a estilhaçar-se ou a mão do médico decepada pela corda sobre tensão.
A polícia cortou a corda, os bombeiros apanharam-na e os médicos e enfermeiros que a esperavam no solo começaram as suas manobras de reanimação. Mas, no fim, só ficou aquele som.
 
(Crónica inspirada num evento real que ocorreu no hospital há algumas semanas. Uma mulher enforcou-se realmente numa das escadarias e um psiquiatra perdeu realmente uma das mão a tentar salvá-la.)

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Crónica do Sossego.

Tenho um sentimento de ambiguidade relativamente a Portugal: 15 meses (já!) depois de aqui ter chegado sinto-me ao mesmo tempo apreensivo pela situação que se vive no país natal e aliviado por ter vindo. Na verdade quando me ponho a imaginar qual seria a minha situação se tivesse ficado em Portugal, tendo por base todas as alterações e cortes que os colegas que estavam em situações semelhantes à minha, sinto um nó no estômago. Por isso, bravo a todos vós que têm a coragem de ficar!
Por isso custa-me por vezes a crer na vida que hoje tenho quando comparado àquilo que tinha em Portugal. Na verdade é um sentimento que me invade frequentemente e que até já comentei com alguns colegas. Hoje tenho um trabalho apenas e não dois, apenas um salário que me garante uma qualidade de vida como não me lembro de alguma vez ter tido em Portugal. Trabalho num serviço de topo a nível nacional com condições materiais, físicas e humanas que em Portugal são apenas um sonho louco, mesmo nas CUF's, nos Hospitais da Luz e outros hospitais e clínicas privadas consideradas "de excelência". Ao final de um ano, deram-me a possibilidade de frequentar uma pós-graduação de Especialidade sem custos para mim e com reais perspectivas de evolução na carreira após a conclusão do curso. E agora eis que sou contratado como Instrutor de Primeiros Socorros e Suporte Básico de Vida numa empresa que dá formação na área da saúde! Tudo isto sem cunhas, sem padrinhos, sem empurrões. Apenas e só com a força do meu currículo, da minha experiência, da minha pessoa. E isso é tão refrescante para quem estava habituado aos culturais "compadrios" portugueses.
Enfim, perdoem-me este texto, pode parecer um pouco ofensivo para quem está um pouco "entalado" e não tem outra saída se não aguentar (não são palavras minhas, são do Ulrich!) mas quando olho para trás, apesar da tristeza por ver o rumo que toma o meu país, sinto-me muito mas muito aliviado!

PS: para quem tiver curiosidade acerca do meu actual local de trabalho cá vai o link para o site internet. Todos as pessoas que aparecem nas fotos são profissionais reais e os meus novos colegas! Eu não apareço no site mas se virem a reportagem acerca do serviço que está la no site (Temps Present) aí sim...    

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Uma é loira outra é morena.*

A loira.
Ora, a loira é a minha preferida. Não porque é loira (o que não faltam por aqui são loiras!) mas porque é simpática e meiga. Mas também é lenta de raciocínio. E tem um sentido de orientação de uma mosca. Chamemos-lhe Floribela. A Floribela nunca percebe uma explicação à primeira e, quando diz que percebe das duas uma: ou diz que percebe mas a sua cara diz exactamente o contrário ou então percebeu mas tudo ao contrário. Coisas que deviam ser claras e adquiridas para alguém que é formando numa especialização em Urgência não o são e, por muito que os nossos formadores insistam em que "não há perguntas estúpidas", o facto é que a Floribela raramente formula uma questão pertinente. Depois, apesar de lhe termos explicado um qualquer assunto por 5 vezes e durante 1 hora, no dia seguinte ela já está outra vez confusa. Aliás, confusa deve ser o adjectivo que melhor se lhe adequa. É certo que o Hospital de Genebra é imenso mas esta miúda é capaz de se perder dentro de uma cabina telefónica! Mas pronto, até simpatizo com ela coitada, apesar de provavelmente as suas células cerebrais embrionárias se terem perdido algures no processo de mitose e duplicação.
A morena.
Bem, esta é uma caso bicudo. Desde que a conheci no serviço que sempre houve alguma coisa nela que me incomodou. Pensei que talvez fossem os seus modos bruscos e cheios de cagança, aquela imensa "certeza no cagar" que algumas pessoas possuem. A resposta sempre pronta e sem qualquer tipo de dúvidas, o discurso fleumático e autoritário, a agressividade latente. Mas não. O que me incomoda na fulana são as IMENSAS verrugas, bem inchadas e castanhas que a tipa apresenta na bochecha direita e bem no meio da testa. Faz-me lembrar a Madame Mim e, na verdade acho que a imagem de bruxa má lhe assenta muito bem. Lá no fundo a Madame Mim é um bocado insegura e precisa de carinho e tal mas, com aquelas verrugas plantadas na fronha é capaz de ser complicado porque um gajo mesmo que feche os olhos aquilo são proeminências capazes de magoar!
E pronto, apresento-vos as minhas colegas de especialização.
 
*Ou "Uma Crónica de um Homem sem Sorte Nenhuma"

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Brevíssima

Ora bem. As aulas da especialidade começaram e já deu para tirar algumas conclusões.
Um, dos 3 alunos que vem do meu serviço uma é um bocado lenta (estava tentado a dizer "burra" mas não quero ser grosseiro) e a outra enerva-me (falo disso depois). Portanto, vale mais só que mal acompanhado...
Dois, a partir do momento em que rapidamente construo uma imagem de "intelectual" face aos meus colegas só porque conheço ao de leve a fisiopatologia das doenças, concluo que afinal não estou assim tão mal a nível teórico. E isso por si só já é qualquer coisa!
Próximos episódios a seguir neste vosso blog que, admito, tem estado um bocado comatoso!