terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Cenário (muito) raro.

São 5 da manhã (quase) e ouvem-se os ponteiros do relógio. Para se ouvirem os ponteiros do relógio numa Urgência é preciso que esteja tudo muito calmo. E está. Há sete doentes na Urgência mas todos estáveis, a dormir. As lampadas à média luz e à minha frente dormitam 4 ou 5 colegas, mal instalados nas cadeiras azuis de escritório, cabeças poousadas nas mesas, embrulhados a lençóis, pernas estendidas, pés descalços. 
Visto assim nem parece o mesmo serviço dos casos graves, dos acidentes e das reanimações. Não parece o sítio onde há sempre movimento, o vai-vem dos enfermeiros, o entre a sai dos médicos, os pedidos e reclamações de doentes e famílias, as macas dos bombeiros que chegam, o telefone das reanimações que toca.
E, visto assim, até se torna um pouco estranho, melancólico até, que o ritmo destas horas de madrugada no Serviço de Urgência seja dado pelo som dos ponteiros do relógio. Mas é booooooom!

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Ópera ou Heavy-Metal?

Vi num dos episódios de "Grey's Anatomy" (sim, sim eu vejo uma série "de gaja" agora deixem lá isso) uma comparação entre uma ópera e uma cirurgia onde, em ambos os casos, tudo é cuidadosamente preparado e planeado tendo em vista um momento determinado em que a cortina se levanta para dar início ao espectáculo. De uma forma semelhante, o instrutor de um workshop sobre emergência e reanimação descreveu a reanimação ideal como uma orquestra: existe um maestro (o chamado "team-leader", normalmente o médico mais experiente no domínio dos cuidados de emergência) e depois os músicos, ou seja, os outros médicos, enfermeiros, auxiliares e todos os técnicos que possam intervir. Não é nada disso. Uma orquestra presume harmonia, tempo, organização, fluidez, sinfonia...
Esta semana participei numa das reanimações mais... digamos complicada, da minha carreira: senhora, 78 anos cai (atira-se?) do segundo andar (cerca de 10 m) e cai em cima de um carro estacionado na rua. O cenário de chegada é fácil de prever. O ritual do costume: os enfermeiros (eu portanto) são os primeiros a chegar, acendem as luzes da sala, ligam monitores e desfibrilhadores, preparam agulhas e seringas, tubos de sangue, compressas e ampolas de medicamentos. Os médicos vão chegando, assim como os técnicos de RX, os auxiliares. Sente-se a expectativa a aumentar à medida que se aproxima a hora de chegada anunciada e quase que só se ouve na sala o "tic-tac" do relógio que tudo vigia por cima da porta de entrada dos doentes. Sinto-me a aquecer por dentro mas não sei se é aquela blusa de papel verde a as luvas herméticas de latéx ou a adrenalina que sobe de intensidade. Tiro o dossier da gaveta e entretenho-me a organizar os papéis na secretária. Tudo o que é médico de um lado, o que é dos enfermeiros do outro e as requisições de análises e pedidos de sangue para transfusão previamente preenchidos e assinados. Ouve-se o helicóptero que aterra no tecto, mesmo por cima de nós...
A doente chega, os ânimos agitam-se, o cenário é pior que se pensava. Neste momento somos corredores à espera do sinal de partida, enquanto ouvimos o relatório do médico do helicóptero... terminou! Precipitámo-nos para cima da doente.
O líder grita ordens para o resto de nós: "vamos cortar as roupas da doente, transferimo-la para a nossa maca com a maca do heli e passamo-la depois para o nosso plano duro! Já!" nesta altura começo a cortar roupa e o meu colega procura uma veia para canalizar. Entendemo-nos bem nós os dois... a doente está pálida e fria e peço à auxiliar para nos trazer lençóis quentes. Cortamos tudo, os anestesistas monitorizam os sinais vitais, a coisa não está boa, tensão muito baixa, pulso muito alto, mau sinal, sinal de hemorragia. Temos acesso venoso mas não temos débito de sangue para analisar, um dos médicos está a tentar picar uma artéria mas não consegue, uma, duas vezes. A doente continua na maca do heli. "RAPAZES, É HORA DE PARAR COM AS BRINCADEIRAS E PASSAR A DOENTE PARA A NOSSA MACA, AGOORA!" Largamos tudo e fazemos como ele diz, rolamos a doente e a anestesista grita "A DOENTE PAROU, A DOENTE PAROU", massagem cardíaca iniciada. Instintivamente vou buscar os eléctrodos do desfibrilhador (aquelas pás que se vêm na TV já não se usam!) e colo-os no peito da doente, ligo o desfibrilhador, modo manual ligado, a máquina apita ao ritmo da massagem cardíaca "DESFIBRILHADOR PRONTO!" grito. Preparo-me para render o médico que massaga mas o líder diz-me: "vais buscar 4 unidas de sangue O negativo!", "4 unidades de O neg" respondo para confirmar que recebi a informação. E corro até ao depósito de sangue O neg que fica fora do serviço num corredor a caminho da morgue... estranha associação esta.
Chego com o sangue e... primeiro desafio! só utilizei a maquina que aquece o sangue enquanto o transfunde uma vez... foda-se já não me lembro.... na hora certa chega o chefe de equipa de enfermagem. Paramos um momento, olhamos para a máquina tentando isolar-nos do ambiente à nossa volta. Estudamos as tubagens e os encaixes e siga! O sangue começa a ser administrado "2 UNIDADES DE O NEG EM CURSO", "Seguimos para a TAC." Há sangue por todo o lado, na doente, nas máquinas, nas batas nas seringas.
Na TAC, transferimos a doente para a mesa da máquina depois de várias hesitações porque o fio é custo, porque o ventilador alarma, porque o sangue parou de correr. Enquanto a doente faz o vai-vem no túnel da TAC é tempo de um ponto de situação "a doente recebeu adrenalina, dormicum, propofol em curso assim como a noradrenalina. Há duas unidades de O neg em curso mais duas em stand-by...", "Ok. Precisamos de mais 4 unidades de sangue mais 4 de plasma fresco." É a nossa deixa. Cada vez que a máquina para entramos na sala para verificar que tudo corre como é devido mas é difícil identificar em que tudo corre o quê... merda! há ar no tubo do sangue e este não corre! Desconectamos tudo, tiramos o ar cá para fora e recomeçamos. Não corre, algo se passa. Trocamos tubos de sítio, paramos perfusões que fazem soar os alarmes, o ventilador não gosta de ter as tubagens dobradas mas lá encontramos o problema. A doente está pálida e fria.
Seguimos para os Cuidados Intensivos. Falta-me o dossier do doente e faltam-me dois sacos vazios de sangue (temos de os guardar durante 48 horas), alguém os deitou fora. Encontro papéis do dossier espalhados na sala da TAC e o resto do dossier está com um dos médicos. Chegamos á UCIinfusoras, tubos e sacos de soro, trocamos os fios dos monitores e entregamos a doente. Enquanto caminhamos de volta ao serviço, eu e o meu colega, apercebemo-nos que passaram duas horas! Ele tem a farda branca cheia de sangue e eu gozo com ele porque devia ter usado as quentes mas úteis batas verdes descartáveis. Estamos cansados mas com a noção que fizemos tudo certo, na hora certa.
Uma reanimação é como uma orquestra? Nã! É mais como o "mosh" num concentro de heavy-metal!


PS: a doente morreu mais tarde nesse mesmo dia...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Pérolas Linguísticas.

Que há muitos portugueses na Suíça já se sabe. Agora que eram TANTOS não fazia ideia! A primeira vez que vim a Lausanne tive a impressão de estar em Lisboa: enquanto passeava nas ruas ouvia algumas línguas estrangeiras que interrompiam o Português! Ele há portugueses por todo o lado: nas ruas, nas obras, nos supermercados, no hospital, nos correios, nos transportes. E isso é fácil de perceber se se souber que vivem cerca de 15 mil portugueses em Lausanne, uma cidade com cerca de 100 mil habitantes.  Sinceramente, quem não trabalhar directamente com o público não precisa de saber falar francês. E isso explica a razão pela qual há tantos emigrantes que falam muito mal a língua do país que os acolhe. E esse sempre foi um tema pelo qual muito me interessei, a Linguagem dos emigras tugas, uma linguagem que só eles conhecem: o Françuguês
Ora eu, tendo crescido numa pequena aldeia onde uma grande parte da população está emigrada e tendo uma grande parte da família em Paris, desde muito cedo que conheço este dialecto dos emigras. O Françuguês é uma mistura de Francês e de Português, onde se utilizam indiferentemente palavras dos dois idiomas numa mesma frase, na mesma conversa e até onde se inventam novas palavras que não existem em nenhum dos dois idiomas. O Françuguês é então um dialecto que dá espaço à criatividade do lucotor e este é alguém que domina na perfeição os dois idiomas (ou isso ou não domina nenhum dos dois, mas esta é uma teoria controversa que não discutiremos). Ainda por esclarecer está a razão pela qual os Portugueses emigrados em países francófonos utilizam este dialecto entre eles, estejam eles em Portugal ou Lausanne, Paris, Genebra ou Limoges. Uma teoria recente atribui este facto a alterações profundas no campo cerebral destas pessoas, que evolui de tal forma que já não é capaz de falar apenas uma língua falando assim dois idiomas ao mesmo tempo.
Exemplos (permito-me a esta liberdade sublinhando o facto que não domino as regras de tão complexa linguagem) que tenho ouvido um pouco por toda a cidade:

- Sr. enfermeiro tenho um pouco de mal à lá téte.
-Venho de passar um fogo rouge.
-Vais ali nettoyer as etageiras que venho de suite.
-Já viste mon chef m'a dit que je não pode ser, je ne peut pas faltar mais vezes, o cabrão. (true story)
- Tu est oú? Espera que j'arrive.

Estes são apenas pequenos exemplos descritos por um leigo na matéria. Mas fiquei deveras siderado, impressionado, rendido com uma conversa que, inadvertidamente, ouvi no refeitório do hospital entre duas empregadas portuguesas. O discurso saltava livremente entre o Português e o Francês começando uma frase num dos idiomas e terminando no outro, palavras eram criadas e utilizadas numa liberdade criativa de fazer corar o maior dos poetas. Aquele discurso foi música para os meus ouvidos e o principal motor deste texto. A minha inspiração! A agilidade mental daquelas senhoras, cujo raciocínio saltitava entre o Português e o Francês tal como abelhinhas esvoaçam de flor em flor buscando o mel, não está ao alcance de todos. Exige prática, investimento, anos de estudo. Actualmente não sou capaz de tamanha proeza, ou falo um idioma ou o outro à vez, mas permito-me sonhar que um dia, talvez um dia. também seja capaz de dominar um dos Símbolos Sagrados dos emigras portugueses: o Françuguês.  

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Em Português nos entendemos!

Uma das diferenças que mais noto em termos de trabalho no dia-a-dia, relativamente a Portugal, é a alegria no trabalho. Não que andemos todos armados em palhaços a pregar partidas uns aos outros, mas que o ambiente seja um pouco mais que só trabalho e conversas de... trabalho! A verdade é que, na sua maioria, os colegas são amáveis, cordiais, prestáveis mas... frios, distantes, impessoais. Por vezes sinto falta de uma gargalhada alta e sincera, da galhofa inconsequente e barulhenta que é tão comum (ok, ok, ás vezes demasiado comum, admito) em Portugal. Por outro lado, exercer a fina arte da piada fácil, do trocadilho evidente, da ironia cáustica é muito mais difícil quando estamos numa Língua que enfim, não é a nossa, por melhor que a dominemos. O que é triste pois quando tenho a sorte de encontrar uma equipa mais galhofeira a maioria das piadas e graçolas, as deles e as minhas tentativas, ficam um bocado "lost in translation".
Por isso é sempre agradável quando me cruzo a trabalhar com outro enfermeiro português do serviço (somos 3). Jovem do Porto há 4 anos na Suíça, fala francês com aquele inigualável sotaque tripeiro e tem um sentido de humor carregado de vernáculo... Estávamos os dois de serviço quando entra um jovem, vinte-e-poucos, nome português, bêbado que nem um cacho, aparentemente inconsciente. Um outro colega, francês, toma conta do caso e volta frustradíssimo dizendo que o fulano não reagia a nada. O nosso colega português chama-me e diz: Queres ver que o gajo acorda já?
E eu "mas vais fazer o quê" pensando logo que ele ia fazer das boas...
Ele entra na Box e, sem aviso, grita ao ouvido do moço: ACORDA CARALHO!!!
O puto levanta-se de um salto e senta-se na cama esfregando os olhos para os abrir à força. Olha para nós, observa-nos por um pouco e depois diz, vos enrolada pelo àlcool:
- Ohhh, ohhh... Foooda-se, pensei qu'era o meu pai....
E com esta se deitou e voltou a adormecer!

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Cá está! Já andava para mudar a imagem do perfil há uns meses, desde que cheguei aliás. Na verdade, a foto antiga já não reflectia bem a actualidade deste blog. Porque foi tirada em Portugal, num lugar e num tempo onde já não me encontro. Curiosamente, também foi tirada num corredor! Devo ter uma tara por fotos em corredores...
Esta imagem (que, devo confessar, acho que ficou porreirinha!) também é tirada nos corredores das Urgências onde agora trabalho. Desde o primeiro dia que reparei num objecto que nunca tinha visto em Portugal e que, na verdade, reflecte a preocupação dos Suíços com a segurança: trata-se de um semi-globo espelhado que, fixo no tecto, permite que vejamos a circulação nos corredores vizinhos evitando assim acidentes. Mas para mim, sempre que me via reflecido naquele espelho via a minha nova vida, a minha nova experiência e o meu novo futuro. Na verdade, se bem que na imagem pareça que estou parado numa encruzilhada, o que sinto é que tenho muitos caminhos à minha frente! Posso ir em frente, virar à esquerda ou à direita... mas nunca voltar atrás!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A bem do País...

Descobri por acaso este vídeo e quero acreditar que a produção do mesmo quis fazer mais uma coleção de cromos assim ao estilo do "Ídolos". Também quero acreditar que este bando de anormais não é representativo dos universitários portugueses...

domingo, 15 de janeiro de 2012

A ver se mudo a foto do perfil...

O que é Nacional...

Nunca gostei de alinhar no coro do "o que vem do estrangeiro é que é bom". É certo que também não sou o mais patriota dos Portugueses mas, se há coisa boa nesta história da emigração é poder constatar que afinal de contas eles, os estrangeiros também não é só virtudes! 
Há imensas coisas em que a Suíça está muito atrasada em relação a Portugal. Exemplos: a internet é normalmente cara e muito mais lenta que em Portugal, as ofertas são fraquinhas e muito iguais umas ás outras; enquanto em Portugal existe um verdadeiro internet banking, por aqui dá para ver o saldo das contas e pagar a renda e pouco mais, nem sequer dá para pagar o telemóvel; Multibanco não existe: cada banco tem as suas próprias caixas automáticas que dão para levantar dinheiro e pouco mais; à hora do almoço está tudo fechado e depois das 18h esqueçam as compras; não há creches e ATL em número suficiente; não há casas em número suficiente e não há lugares de estacionamento. Para além de que se paga até o ar que se respira! Claro que depois temos todos os aspectos em que eles são, de facto, melhores que nós mas isso agora não interessa nada.
Mas tudo isto para chegar á comparação que agora, passados 3 meses já posso fazer...
Em termos de Serviço de Saúde a diferença entre Portugal e Suíça está apenas nos recursos. Enquanto em Portugal qualquer dia estamos a reutilizar fraldas descartáveis e a por os doentes a vigiarem-se uns aos outros, por estes lados há material e pessoal com fartura para trabalhar. Já a qualidade dos profissionais... garanto-vos que já vi de tudo por aqui desde pessoal altamente profissional até grandes abéculas que não desejo na minha cabeceira, se estiver doente. Também há lobbys, invejas, grupinhos, preferidos, injustiças e malta a lamber o cú ao chefe. E o chefe (neste caso "chefes" que só no meu serviço são 2 chefes e 5 adjuntos!) também se deixa levar em joguinhos de interesses e políticas. Mas na chamada "hora da verdade" já vi colegas a fazerem merda da grossa, a colocarem em risco o doente e a cagarem-se completamente para este último. Se não fosse a organização, a planificação, a fiscalização (como devem calcular, com tantos chefes a vigiar quase nada passa em claro!) e os recursos, ai, ai...
Em termos de trabalho nós, os Portugueses (é somos três aqui no serviço, com um quarto a caminho) náo ficamos atrás de ninguém! Era só por os Suíços a mandar em nós e garanto que seríamos um dos países mais ricos do Mundo!