A cena repete-se no tempo mudando apenas os intervenientes. Um homem, normalmente em pleno gozo da sua reforma, apresenta-se na nossa triagem:
-Então bom dia! Explique lá o motivo que o traz à urgência.
(a mulher responde) -Olhe Sr. Enfermeiro, ele tem-se sentido muito mal nestes últimos dias, tonto e mal-disposto e não come bem e também não dorme.
-Peço desculpa pela minha pergunta, mas o senhor não fala? Tem algum problema que não lhe permite ser ele mesmo a descrever as suas queixas?
(nesta altura o homem responde com um tímido "Não" mas é logo abafado pela esposa)
-Sabe sr. enfermeiro, ele não sabe queixar-se, não sabe o que tem.
-Mas a senhora sabe? Afinal quem é que está doente? Parece-me que é ele...
-Pois é mas ele não sabe!
Esta última frase é dita no tom inconfundível de "quem manda lá em casa sou eu e por isso eu é que sei o que ele tem" e o marido já olha para a mulher com aquele não menos inconfundível olhar de "chiça mulher, cala-te lá de uma vez por todas! Rais' parta o dia em que me casei contigo, iiiiirra!". E, acto contínuo peço à senhora que aguarde na sala de espera enquanto eu falo com o doente sem ter uma terceira pessoa a traduzir. O que acontece a seguir é ainda mais hilariante (ou irritante, depende do dia em que me encontro!): a mulher prostra-se atrás da porta a ouvir a conversa e interrompe sempre que julga necessário, alvitrando as mais sapientes sentenças "ele a mim não me disse isso, olhe que ele sofre do coração, tem a diabetes alta" entre outras coisas! No final de tudo interroga o já farto dela -marido "disseste que te doía o braço, falaste da próstata, viram-te a tensão, falaste da operação aos testículos em 1940?" ao que o marido responde com um "Siiiiiiiiim mulher..." enquanto rola declaradamente os olhos. Não satisfeita, a mulher dirige-se a mim para aplicar a mesma técnica de tortura por perguntas até à exaustão!
Hoje, a um desses desgraçados, pedi que fosse urinar para um copo para que pudéssemos analisar a urina. O olhar dele quando a mulher, alto e bom som em plena sala de espera repleta de pessoas lhe perguntou "Precisas de ajuda?" foi impagável! Juro que, por um momento, aquele homem teve um impulso homicida!