segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Limbo.

Há uns post atrás, na zona de comentários desenvolveu-se uma curta troca de ideias sobre o Limbo. Esse espaço vazio onde pairam as almas que não têm acesso ao Céu. Eu, que sou um agnóstico céptico, andei desde então a matutar nessa questão do que seria o limbo. E hoje vi.
Entrei no quarto para mais uma intervenção de rotina. O doente, paralisado numa das metades do corpo, a outra metade fora do seu controlo. Não consegue falar, muito embora o seu olhar revele o desespero de alguém que tem ainda muito para dizer. Uma sonda sai de uma das suas narinas, uma outra pendia de lado da cama terminando num saco onde se acumula a urna. Uma das mãos presa com uma amarra à cama. Os seus músculos levam a que o braço esteja permanentemente dobrado, impedindo assim que o soro colocado numa veia flua, pelo que é absolutamente necessário que ele esteja esticado. A fralda, como sempre, está suja e precisa de ser mudada. O seu corpo está inchado e a sua carne tem a consistência de plasticina. A minha mão fica marcada na sua perna quando o posiciono, como um molde de gesso.
A sua filha está sentada ao seu lado e limpa apressadamente as lágrimas quando me aproximo. Tem os olhos inchados e as suas mãos tremem ligeiramente, agarrada à mão presa do seu pai. Olha-me com todas as interrogações a faiscar nos seus olhos mas conheço bem a pergunta que não me faz, apesar de ser a que mais quer ver respondida: Quando? Chama-me a atenção para a mão inchada quando esta é apenas o menor dos seus problemas. Tem de dizer algo, sente-se na obrigação de o fazer. O silêncio é demasiado pesado. Também eu o sinto quando entro. Respondo com carimbo aplicado nestas situações: estamos a fazer todos os possíveis. Deveria eu escutar esta mulher? Deveria sentar-me a seu lado e absorver as suas dúvidas? Devia alongar-me nas explicações técnicas? Saio com um "até já".
A filha debruça-se sobre o pai e beija-lhe a face do lado que ele não sente, do seu lado morto. Derrama as suas lágrimas na face do seu pai. Ele chora também, a face inexpressiva parece ser pequena para aqueles olhos suplicantes. Qual a sua súplica? A filha soluça enquanto percorre apressadamente o corredor para a saída. O doente solta um gemido que percebo vir do mais profundo de si. Arrepio-me.
Isto é o limbo na Terra.

17 comentários:

Ana. disse...

Juro que queria dizer qualquer coisa muito inteligente, muito profunda, mas não consigo.
Este é talvez dos meus piores pesadelos.

:|

margarida disse...

Que horror.
As histórias de sofrimento fazem-me sempre chorar.
Tenho tanto medo que as pessoas que amo sofram assim, a ponto de desejar a morte..

José Matos disse...

Miguel,

Não consigo articular bem as palavras depois de tão pungente descrição da realidade do teu dia a dia de trabalho.

Imaginar o sofrimento de tantas e tantas pessoas como essas do artigo (pacientes e familiares/amigos) e do que vocês, profissionais de saúde, têm de muitas vezes "aguentar" é extremamente duro.

Uma força de alguém que não sabe se teria força de desempenhar tal tarefa sem se desmanchar,

Melissa disse...

É uma profissão abençoada, a tua, cara-pálida. É relevante. Agradece por a teres quando te sentires avassalado.

Naná disse...

Miguel, por isso é que não perco um post teu... tu consegues pôr em palavras cruas aquilo que passam diariamente as pessoas doentes e o que familiares sentem quando os vêm nesse estado! Cru, mas muito realista.
Depois de ter visto o meu avô definhar lentamente durante 3 meses vítima de sucessivas tromboses que o foram tolhendo progressivamente até à decadência e depois de ter assistido à morte lenta da minha mãe, em luta acérrima com um cancro de mama, tornei-me agnóstica, eu que sempre fui católica praticante e church-going...
Nunca me perdi muito nessas dúvidas de se existe um limbo ou se existe vida depois da morte. Actualmente o que acredito é que somos energia e quando nos desprendemos do nosso corpo terreno, nos transformamos em energia positiva.
E há dias em que sinto a energia extremamente positiva da minha mãe, um exemplo de paciência pura e do meu avô, o meu ídolo em sabedoria!
Também eu, como a filha do teu paciente, derramei muitas lágrimas nos seus rostos inexpressivos e já cansados, e pedi a "alguém" que os desamarrassem daquele «degredo corporal»...

Tasha disse...

Miguel, ha muito que nao comento por aqui porque tenho andado ausente, mas este é um assunto que me toca muito.
É por estas e por outras, que eu defendo a Eutanásia. Ninguém deveria ter que sofrer tanto. Nenhum filho, mulher,parente ou amigo deveria ter, como última recordacao, um cenário de tanto sofrimento nem tristeza.

Ana C. disse...

Penso muitas vezes nisso e tenho quase a certeza que esse tão falado limbo está do lado de cá e não do lado de lá.
O outro lado é uma libertação...
Gostei muito deste texto.

Cristina disse...

É preciso coragem para assumir tal profissão Miguel... É preciso gostar mesmo!!

Nuvem disse...

Infelizmente sei o que é isso....
a minha avó esteve quase um mês no hospital a lutar... até morrer.
teve uma hemorragia interna que ninguém quis/conseguiu parar e nem com as inúmeras transfusões se resolveu.
Foi ficando negra... inchada... e quando finalmente cedeu tinha o corpo todo negro, do sangue pisado.
Foi um verdadeiro limbo, para ela e para a família que a acompanhou(ámos) nesta fase.
E o pior era sentir nos olhos dela o sofrimento, as dores... e saber que não se podia/fazia nada... era só esperar.

finalista disse...

ja passei por isso algumas vezes enfermeiro...um combinado de hemiparesia, anasarca, dispneia, insuficiência cardiaca, hipotensoes acentuadas, hematuria, dor, etc..ver alguém nesta situação e pensar que em tempos essa pessoa ja foi também um bebé,uma criança, um adolescente, um adulto, alguém como nós, e que agora se encontra neste ou naquele estado, dá que pensar... :|

ana disse...

Até me arrepiei. Bom texto.

Banita disse...

Ai, Miguel, tu não faças chorar uma grávida que ainda me vai sair um bebé chorão!
Deve ser horrível viver nesse limbo, mil vezes a morte de uma vez que preso num corpo que não funciona e onde não se quer estar!

Dive disse...

Damn...

Trabalhar no bloco as vezes defende-nos "" desses momentos mais pesados.Cobardia ou Sorte? Nem sei...

DoceSussurro disse...

Tenho passado por aqui há uns dias...
E a sua escrita faz me querer voltar.
Escolhi comentar este post pela intensidade que lhe conseguiu dar. E é duro ter consciência que esta é a sua realidade.
Por isso admiro todos os profissionais de Saúde. Perdoe a falta de originalidade, mas de facto, não me imagino "nesse" seu papel ... Difícil e ingrato.
Parabéns pelo blog :)

Miúda disse...

Porra Miguel! Este é, muito possivelmente o blog mais completo, com mais conteudo (pleonasmo) de toda a blogosfera. Que poderias tu dizer mais? Bem hajas.

Maria disse...

Deve ser tão dificil lidar com um fim assim..

PAXCS disse...

Este teu post (espero que não te importes que te trate por tu) fez-me recordar um dos períodos mais duros da minha vida: há poucos meses perdi o meu avô materno!

a descrição que fazes neste post é por demais similar áquela que vivi quando o ia ver. ou melhor, com aquela que a minha mãe vivia.

Ver uma pessoa de quem gostamos a sofrer por não conseguir mexer uma parte do seu corpo, por a outra estar continuamente a tremer excepto quando ele se concentra para nos apertar a mão quando o vamos ver e quando o olhamos nos olhos vê-mos que ele está lá: o corpo pode já não lhe obedecer mas lá dentro continua aquele de quem gostamos e ele sabe quem somos!

É muito doloroso... talvez por isso quando o ia ver não lhe conseguia dizer muita coisa, limitava-me a ficar a olhar para ele, a agarrar-lhe a mão e a pensar em... nada. sim, em nada, porque não sabia se devia pensar quando é que ele ia ficar melhor ou quando é que ele ia morrer!

P.S.- no espaço de alguns minutos fui das lágrimas do riso às lágrimas da tristeza.