segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Trabalho invisível.

O trabalho dos enfermeiros nem sempre é reconhecido. Muitas vezes porque é trabalho que não se vê, que se prolonga no tempo, que se faz nos bastidores digamos. Comigo passou-se uma situação, já há alguns anos, que confesso me deixou bastante desagradado. Não é que queira que me agradeçam pelo meu trabalho mas...
Trabalhava na Urgência e aquilo estava caótico. Normal, portanto! Entre um doente e outro fui abordado por um senhor que barafustava que tinha o pai à espera há mais de quatro horas, isto depois de ter feito uma série de exames. Problema: a ficha do doente tinha-se evaporado, juntamente com os exames do senhor! Falei com o filho e reconstituí o percurso do doente dentro do hospital e fui à procura. Encontrei a ficha e os exames enfiados numa gaveta de uma secretária de um cirurgião conhecido, de resto por "perder" as fichas dos doentes. Perdi cerca de 30 min com esta procura e, no final, falei com o médico com quem trabalhava naquele turno e pedi-lhe para resolver a situação. Informei o filho que o problema estava resolvido. O médico chamou o doente e deu-lhe alta. Estava tudo bem. No final, pai e filho derreteram-se em agradecimentos ao médico: "Ai Sr. Dr. se não fosse o senhor ainda estávamos à espera!". Admito que me senti bastante desconsiderado porque todo o trabalho foi meu e, se não fosse por esse trabalho, essa meia-hora que tirei aos outros doentes para fazer um trabalho que até nem era meu, mas que eu sabia que mais ninguém faria, esse doente ainda hoje lá estaria à espera!! Mas, no final, quem é que falou com o doente? Quem é que lhe disse "Vá embora descansado, as melhoras!"? Pois, não fui eu...
Óbvio que eu não estou à espera que me agradeçam pelo meu trabalho, que é pago. Mas este caso em particular ficou-me "entalado" na garganta pelo simples facto de o doente e o seu familiar nem sequer me terem dirigido a palavra na hora da despedida. Um simples "bom dia" e um sorriso teria sido o suficiente. Lembrei-me deste episódio agora mesmo, depois de uma doente me ter insultado porque estava à espera (e nem sequer há muito tempo!) e de nem sequer me ter dirigido a palavra à saída, depois de ter sido convenientemente tratada.
Parece que um texto que se iniciou debruçando-se sobre a invisibilidade do nosso trabalho se tornou numa reflexão sobre a falta de consideração de alguns (muitos, demasiados) doentes.

6 comentários:

Joao disse...

Este relato faz-me lembrar outros. Tendo a minha mulher trabalhado, vários anos, como administrativa de um centro de saúde, ouvi muitas vezes contar como os doentes se queixavam imenso e berravam - às vezes quase com violência física - com toda a gente, mas depois quando chegavam aos médicos eram todos sorrisos.
Duas considerações: 1) há de facto pessoas muito mal educadas, ainda que o stress da doença possa, em alguns casos, fazer das pessoas mais correctas as mais carrancudas e 2) creio que as pessoas tratam os médicos com sorrisos e despejam nos demais porque têm medo dos médicos, que, como sabemos, são muitas vezes uns mercenários menos preocupados com os doentes do que com as contas bancárias.

Madalena Sousa disse...

É triste.
No meu trabalho, as pessoas tratam-me melhor enquanto pensam que sou Sra. Dra. Uma vez esclarecidas, passo a ser pior que cão (não desrespeitando os cãezinhos que tanto gosto, claro).
Bastava em simples sorriso, efectivamente.

Sahaisis disse...

tens tanta, mas tanta razão...

Tia Complicações disse...

Quem nunca foi vitima de situações destas. Faz-se de bom samaritanos e no final nem um obrigado...enfim meu amigo o S. Pedro vai contabilizando as boas acções toda, um dia será pago a dobrar por elas todas (e com juros);)
Palavra de Tia

Naná disse...

Miguel, infelizmente a má educação grassa um pouco por toda a parte... e nesses locais então deve ser recorrente...
No meu caso específico, sou muito anti classe médica. Acho que a maior parte são arrogantes e por mais que compreenda que para alguns é uma barreira de distanciamento para não endoidecerem, em muitos médicos com quem tive o pouco prazer de conversar, sempre em casos de extrema gravidade, nunca me deixaram bem impressionada... (houve um no IPOFG, tinha eu 16 anos, me deu carta branca para aumentar dosagens de morfina e de soporiferos à minha mãe em estado terminal... quando perguntei o que havia de fazer porque a minha mãe não dormia com as dores excruciantes que tinha... ele responde com um ar muito natural: senão faz efeito, aumenta a dosagem!).
No S. José posso dizer que os enfermeiros foram o meu maior apoio, porque o médico era super disponível quando eu o encontrava... porque de resto, quase tinha que meter uma requisição civil para falar com ele... e quem me ia dando uma imagem do panorama à socapa eram os enfermeiros, porque me viam aflita, na ignorância e ansiedade de um pai em estado comatoso...
Mas Miguel, acho que por causa desses srs. mal educados não deves nunca deixar de ter a atitude que tiveste!

gralha disse...

A educacao das pessoas tambem se ve na forma como tratam os outros, independentemente do "valor social" da sua profissao. Muito gosta o Ze Povinho ignorante de fazer venias irreflectidas a medicos e engenheiros...