terça-feira, 29 de novembro de 2011

Aviso: isto é coisa que vicia!

Começa com um ritual que fazemos todas as manhãs: abrir as salas de Reanimação (onde recebemos situações muito graves, ou seja, perigo de vida imediato) e ligar as máquinas. Ouvir os seus estridentes sons de alarme, calibrar valores, fazer testes de função. E verificar o material, se está presente, se tudo funciona se as coisas certas estão nos lugares certos. E, ao verificar uma check-list onde tudo está esquematizado e listado e ao verificar os protocolos de actuação na Sala de Reanimação, temos a impressão que tudo deverá correr de uma forma planeada e ordenada. Não.
Toca o telefone de anúncio de situação de reanimação. É activado pelo INEM cá do sítio. É um som rouco e alto, uma espécie de alarme de radioactividade que se ouve nos filmes, e que ecoa por todo o serviço. Dois ou três enfermeiros precipitam-se para o atender mas aquele que finalmente responde à chamada entra numa espécie de transe: não diz nada e rabisca apressadamente cruzes e pequenas palavras num pequeno formulário. Finalmente desliga e, trocando de telefone, marca um número e diz algo do género: "Homem, 56 anos, encontrado inconsciente na sua casa, glasgow 3, intubado, instável, chegada dentro de 15 minutos" e desliga. O computador ao qual esse telefone está ligado mostra uma lista dos elementos aos quais a mensagem vai ser enviada: Médico do Serviço de Urgência, Médico dos Cuidados Intensivos, Chefe da Equipa de Enfermagem, Técnico de RX... À medida que essas pessoas vão atendo os seus telefones, os seus nomes passam de vermelho a verde no ecrã.
Cinco minutos antes da hora da chegada do paciente estamos todos dentro da sala, á espera. Sente-se a tensão a aumentar. Já preparei os meus medicamentos de urgência, o material de intubação, os tubos para onde vou colher sangue, as agulhas, os soros. O meu colega ligou o desfibrilhador, o ventilador e também está preparado. Os médicos aguardam, alinhados, em frente à porta de entrada. O doente chega, o pessoal do INEM cá do sítio transmite o que sabe e o que fez e o doente passa para a nossa maca. É o nosso doente agora, precipitamo-nos para ele, cada qual com sua missão. Eu tento picar uma veia para o sangue, para deixar um catéter lado a lado com um médico que tenta picar uma artéria. Empurramo-nos um pouco para tentar encontrar a melhor posição. Não dá, digo-lhe para se afastar um pouco, preciso de espaço. Ele sai de cena. Do outro lado da maca o meu colega já tem o doente ligado ao monitor que apita dando o ritmo cardíaco e também marcando o ritmo das nossas acções. À cabeça do doente, o médico mais experiente (o "Team-Leader) debita informações e indicações para o resto da equipa. Anuncio que tenho um acesso venoso e ele inicia a lenga-lenga da mediçação a dar: "x" miligramas disto, "y" microgramas daquilo, iniciar perfusão de "z" a "x" miligramas/hora. As pessoas atropelam-se na sala, uns que entram com novas informações, outros que saem para enviar o sangue para o laboratório, nós gravitamos à volta do doente, fios enrolados, tubos de soro que se cruzam. Doente estável, ligamos o carro de transporte (uma enorme coluna cheia de máquinas) à maca e lá vamos nós para a TAC, para o Bloco Operatório, para a Cardiologia de Intervenção, para os Cuidados Intensivos. Nos corredores as pessoas encolhem-se à nossa passagem, somos muito e as máquinas apitam e um Ser Humano com tubos enfiados em vários orifícios e ligado a 3 máquinas diferentes impressiona sempre!
Doente entregue no seu destino. Voltamos, arrumamos a sala e repomos o material utilizado, testamos as máquinas e deixamo-las prontas a utilizar. Apagamos as luzes e fechamos a porta atrás de nós. O telefone toca outra vez...

7 comentários:

joao disse...

o sonho de qq jovem enfermeiro...eheh

Sandra disse...

Bem, que tensão, que urgência...suponho que um aparente caos mas bem organizado.
Toda a sorte e muitas vidas salvas!

Helena Barreta disse...

Ainda bem que estão lá; ainda bem que sabem todos o que têm que fazer; ainda bem que fazem todos os esforços para nos acudir.

Era bom que salvassem todos aqueles que entram na vossa sala.

Um abraço

Carina disse...

fascinante!!!!!! =)

Carla Santos Alves disse...

Deixou-me de lágrimas nos olhos.
Vocês deviam ser pagos a peso de ouro!Parabéns!
Obrigada por cada ser humano que salvam!

Brisa disse...

É por relatos assim que adoro este blog. Gosto de saber como se passam as coisas do outro lado da trincheira.

Menina M disse...

UAU! Acredito que vicie, porque deve ser um fluxo de adrenalina incrível.
Enquanto lia a descrição só me lembrei dos episódios de Anatomia de Grey.
M