Uma mulher entra na urgência com uma bebé ao colo: "Não sei o que se passa com a minha filha, está assim há dez minutos..." o tom é preocupado mas não particularmente alarmado. A menina, 11 meses, 7 quilos de gente, estava pálida e contorcia-se estranhamente. A minha colega resgata a menina dos braços da mãe. Convulsões. Há dez minutos. Alarme.
40º de temperatura, paracetamol, compressas de água fria, diazepam para tentar parar as convulsões... a menina acalma, respira melhor, a temperatura baixa. A mãe chora. Chamamos os bombeiros para transportar esta menina para a pediatria. Eles chegam e com eles voltam as convulsões. Mais frequentes, mais violentas, mais preocupantes. Não há nada mais que possamos fazer, estamos de mãos atadas. A médica telefona para o INEM que responde que não vai enviar ninguém, os bombeiros que façam o transporte mesmo assim. A médica volta, ansiosa, atrapalhada. Um dos bombeiros liga para o INEM de volta e discute com o outro lado da linha, bera e insulta. Mas desta vez justificam-se os insultos. 20 minutos de convulsões.
A menina não dá sinais de melhorar, pelo contrário. Começamos a ter sinais de compromisso neurológico. As nossas mãos acariciam aquele bebé na esperança que o toque, a nossa energia resolva aquele problema. Não resolve. Isto não é um filme, é a vida real. 30 minutos. Começo a ficar agitado, não há nada que possa fazer. Não temos mais nada a oferecer. Penso no que faria se fosse um adulto. Percorro os algoritmos de emergência para trás e para a frente mas nada acontece. Mesmo que tivesse o material necessário não sei as doses pediátricas... a médica também não. Desaparece. 40 minutos. A minha prioridade é proteger aquele catéter que conseguimos colocar dentro de uma veiazinha. Aquele cano de látex pode significar a diferença entre a luz e as trevas. Alguém começa aos berros do outro lado da porta. Querem ser atendidos. Parece que é um penso. O sangue ferve-me e grito quase histericamente com a administrativa quando ela me pede ajuda. A minha prioridade não é dar satisfações a uma família de três animais porcos enquanto aquela menina se debate pela vida. Peço desculpa à funcionária mais tarde e ela diz-me, num encolher de ombros: "Sabe com são os ciganos..." 50 minutos.
Chega finalmente a equipa do INEM. Reconheço o meu colega, trabalhámos juntos noutras urgências. Prepara o tão ansiado medicamento sedativo, observo-o enquanto empurra o líquido transparente por aquela linha de vida que lhe colocámos antes. A menina acalma, para de se contorcer e, finalmente, parece dormir descansada. Mas a sua luta não ficou por aqui....
O problema de se trabalhar em Urgências Básicas, ou SAP's é que se apanha qualquer coisa pela porta adentro, sem qualquer tipo de apoio...
8 comentários:
Não deve ser nada fácil lidar com situações destas...
Meu Deus, que situações
E ao olhar para a minha bebé sinto tanto as palavras que escreves, a situação de impotência... e rezo para nunca ter de passar por isso!
Deve ser incrível...
E isto dito pela pessoa que quando o irmão estava às portas da morte ligou para o 112 e desligaram a pensar que era brincadeira :(
enfim...
Caramba!!!! Tou com as lágrimas nos olhos e pele de galinha...ao mesmo tempo que lia o texto só me passavam imagens na cabeça da minha filha de 3 anos e e e....sei lá!!! Impotência é mesmo a melhor palavra.
Parabéns pelo blog já tenho passado por aqui várias vezes mas nunca comentei, e hoje tive mesmo de o fazer!!!
sempre vi os enfermeiros e os médicos como uma espécie de anjos de guarda. tudo o que tenho lido por aqui, ao longo dos últimos meses, só me mostrou que estava certa. eu já passei por algo parecido e senão fossem os enfermeiros e o médico que tratou de mim, não sei onde estaria.
deve ser uma luta constante, essa sua missão... obrigada por ter aceite ser mais um dos muitos anjos da guarda, neste país onde os anjos da guarda são tão maltratados...
[e a menina... ficou bem?]
Estou com os nervos em franja. Fiquei nervosa. Só de ler. O sentimento de impotência é destruidor, e quando se trata de bebés ou crianças a coisa piora.
Coragem...sempre!
Coitadinha, pá... Custa ler isto. Mas imagino que tenha custado muito mais estar lá e sentir.
Fiquei literalmente com o coração nas mãos. Porque raio é que a médica simplesmente desapareceu?
Este texto está um pontapé na cabeça, conseguiste deixar passar todas as emoções e emocionar-me seu sacana...
Andei 8 anos para tras agora (o coracao apertadinho)... 3 horas a espera num sap para uma crianca de 2 anos ser atendida ate que desisti e resolvi ir a uma clinica privada,no caminho entrou em convulsoes e ficou inconsciente...a sorte estava a 2 minutos de um outro posto de saude onde foi bem atendida nao chegou a estar inconsciente 10 m mas foi a 1.30 h mais longa da minha vida ate se conseguir baixar a temperatura. Vi a minha vidinha toda a andar para tras!! Felizmente nunca mais se repetiu e nao houve sequelas
claudia
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