terça-feira, 31 de março de 2009

Fim de ciclo.

A vida é cíclica. Penso que concordarão comigo. Neste momento sinto-me a chegar ao fim de um ciclo, a nível profissional. Noto-o pela dificuldade com que venho trabalhar, na falta de vontade de render o colega, na não-memorização do horário a cumprir, na saturação em ver sempre as mesmas cara, ouvir as mesmas perguntas, escutar as mesmas intrigas. Sinto-o quando o tempo demora mais a passas, quando não tenho nada de especialmente gentil ou engraçado a dizer aos doentes, quando associo o nome do doente na ficha à sua face e sei, de cor, a sua história clínica. Quando preparo as terapêuticas sem olhar para as etiquetas nas gavetas e quando não me lembro de ter picado aquela doente, quando penso noutras coisas enquanto administro um soro ou faço um penso. Quando me sinto um autómato. Quando me sinto cansado, apesar do turno estar leve e quando não tenho a mínima vontade em escutar os problemas do colega de turno, quando me estou nas tintas para as conversas de corredor e quando forço um sorriso enquanto observo a foto dos netos das administrativas. Quando não tenho pachorra para aturar as conversas banais do segurança, quando vou ao bar e tomo o meu café numa mesa isolada quando há gente conhecida noutras mesas. Quando desvalorizo as queixas de uma auxiliar que sei estar depressiva porque lhe encontraram um nódulo na mama. Quando saio do serviço com um "Até amanhã" seco e despersonalizado.
O problema é que este não sou eu. Trabalho nesta instituição há cerca de 4 anos (pouco tempo, pensarão muitos!) e as pessoas habituaram-se a ver-me sempre contente, riso fácil, piada pronta, beijinhos na face, dá cá aquele abraço! Porque eu sou assim. Conhecem a minha mulher e o meu filho, perguntam por eles, dão prendas nos aniversários e no natal. Preocupam-se, ficam contentes quando partilhamos um turno. Sabem que, comigo não haverá problemas, que o serviço fluirá sem sobressaltos, sabem que tento controlar a ansiedade dos utentes com o bom-humor e não com agressividade. Sabem que podem contar comigo para os ajudar nas suas situações com os utentes.
Mas estou cansado. A rotina de sempre, os médicos de todos os dias, os doentes de sempre, o mesmo espaço, o mesmo material, os mesmos colegas, os mesmos problemas, as mesmas situações clínicas, as mesmas prescrições, os mesmos tratamentos. Preciso de mudar. Nesta altura muitos de vocês pensarão: "Então muda!!", mas as coisas não são assim tão simples. Não há vagas de emprego, principalmente para quem já tem dois, e existe uma boquinha para alimentar lá em casa. Nas últimas duas instituições onde trabalhei saí ao final de 4 anos. O que me assusta não é o fim de um ciclo. É ficar preso num ciclo que já terminou.

9 comentários:

Irina A. disse...

Eu sei que cada um vive as coisas à sua maneira, mas aguenta Miguel. Graças a Deus tens dois empregos, não queiras nunca estar na minha situação.

Ana C. disse...

Já percebi que os teus ciclos são de 4 anos.
Mas estarás farto do teu local de trabalho, ou da tua profissão?
É que se for o caso de estares desgastado, cansado, farto daquilo que fazes, mudares de local de trabalho só te vai comprar mais 4 anos...
E as nossas obrigações familiares, apesar de serem maravilhosas, obrigam-nos a manter os pés bem assentes na terra. Não é fácil gerir tudo...
Só te posso desejar muita serenidade.

Miguel disse...

Não quero parecer ingrato perante as pessoas que estão desempregadas Kitty...
Mas a verdade é que estou mesmo fartinho!!!
Boa sorte para ti!

Miguel disse...

Olha Ana... na verdade estou farto deste local de trabalho e um pouco (bastante) desiludido com a profissão!! A ideia não é mudar de quatro em quatro anos mas sim evoluir! Subir na hierarquia, especializar-me, sei lá... o problema é que isso é, para já (e estou em crer, durante muitos anos) impossível com o actual estado das coisas na enfermagem!!
Mas não ponho de parte a ideia de mudar de carreira... assim a vida o permitisse (olha, escrever novelas LOL)!!
Obrigado pelo voto de serenidade, bem preciso!

undutchablegirl disse...

Ai Miguel, Miguel, sei tão bem do que falas, há um ano atrás também eu andava assim, saturada, a soprar por todo o lado, sem paciência para nada e a ferver em pouca água. Olha no que deu: tornei-me numa emigras! LOL
Vá... vamos lá a ressuscitar esse humor...

Carla disse...

Por muito que se goste da profissão todos temos fases menos conseguidas. Em que sentimos que queremos mais, senão viramos máquinas.
E quem exerce a sua profissão, deseja tudo menos tornar-se máquina.
Só prova que é um homem sensível e isso é sempre bonito de ver.
Outros dias virão, outros ciclos também, entretanto muito calma e paz.
É um 'discurso' banal, mas todos passamos por isso.

Precis Almana disse...

Miguel
Vou falar de cor porque não sei exactamente a tua situação nem se é possível o que vou aqui dizer-te. Mas se queres mudar de "ares", perto de mim tive recentemente dois casos de pessoas que precisaram de enfermagem ao domicílio e não há, pelo que percebo, tanta oferta quanto isso... Enveredares por uma coisa deste género? Variar doentes, lá isso variavas...

andreia disse...

ola ;) também eu trabalho há apenas 4aninhos e meio (em constante contratos na mesma instituição) e sinto exactamente o mesmo. e já ponderei se será cansaço do serviço onde estou há 4anos (se necessito de mudar de serviço para a tal evoluçao) se preciso de mudar mesmo de profissão , e essa ideia está cada vez mais presente e parece-me cada vez mais a mais acertada... o teu texto descreve tal e qual o meu espírito diário. o que custa mais ainda, são os turnos da noite, não aguento, fico irritada irritadiça insuportável, mas tento controlar e sou a paz de alma em pessoa, que tudo ouve com calma e serenidade, mas que também, ultimamente, sorri e ouve quase por obrigação, o que torna-me triste... nao devia sentir-me obrigada a sorrir, a ouvir, a partilhar... mais do que irritante, é triste... a componente que mais me fascinava nesta profissão era mesmo a comportamental/relacional doente e família (daí gostar de trabalhar imenso com os laringectomizados, pela relação que se estabelece nao so com o doente como com a família e adoro trabalhar com crianças, componente criança e o ambiente familiar. sim, o meu serviço é de especialidades médicas: internamento/consulta e urgencias de oftalmologia, otorrino, urologia, cirurgia ambulatoria, quartos particulares e ainda cirurgia pediátrica a partir dos 5aninhos) Mudar de serviço, ok, mudar sim senhor (mas estou em contrato, nao vou pedir transferência, vou para onde me mandarem), tem de ser, nao estagnar (continuo a gastar dinheiro em cursos dados por entidades que sao conhecidas pelos enfermeiros , mais os congressos , etc., mas investir em enfermagem na forma como isto está? numa pos-graduaçao, mestrado ou ainda especialidade, valerá a pena? e noutra licenciatura? e tempo para estudar? sim, porque há que continuar a trabalhar para manter as contas em dias, as responsabilidades nao desaparecem. mas então investir em qual curso? o que tem saída profissional? quem nos pode informar da realidade real verdadeira (sim, pleonasmo) o que me realizará? nem eu sei... :/ é triste... mais do que um desabafo de não estar satisfeito, nao sentir total realizaçao pessoal, é triste nao saber que passo dar para mudar porque nao se sabe o que se quer...
um abraço de uma leitora assídua e colega de profissão:
andreia

Banita disse...

Li no expresso emprego sobre um emprego de enfermagem no Reino Unido, neste fds... E que tal uma mudança de clima, ares, País, etc??
:)
Boa sorte!
Um beijinho