Artur acordou ao som de "Pictures of You" dos The Cure. Estranha coincidência, pois tudo aquilo que restava da Maria que ele conhecera existia agora apenas nas fotos espalhadas pela casa. A noite tinha sido boa conselheira, precisava de falar com Maria. Preparou-se o melhor que pode e vestiu a roupa que Maria mais gostava de lhe ver: uma camisola de algodão cor-de-rosa (que ela insistia que era "salmão") com umas calças de bombazine azul claras com um corte bem moderno, tipo jeans Levi's 501.
Optou por ir de autocarro, precisava de estar concentrado e organizar todo o seu discurso. No entanto, os seus pensamentos fugiram para as lembranças de Maria. Maria era fisioterapeuta. Conheceram-se logo após a conclusão dos cursos. Artur tinha feito uma entorse no pé, num daqueles jogos de futebol com os amigos e ela fora a sua terapeuta. Fascinou-o a sua energia, uma luz invisível que a rodeava e que fazia com que se tornasse impossível não reparar nela. Talvez fossem aqueles olhos verdes brilhantes, como se o mar ondulasse encurralado neles. Mas ele era demasiado tímido e havia uma corte enorme de homens, doentes e colegas, de volta dela. Contudo, algo nele a prendeu. O mistério que os olhos dele continham, confessou ela mais tarde, que faziam adivinhar que havia muitas coisas escondidas atrás daquela aparência vulgar, apesarde ele não ser um homem feio. Fora ela que o descobrira, aos poucos e tinha derrubado todas aquelas defesas das quais ele se rodeara. Quando Artur se apercebeu do que se estava a passar, já ela o beijava em pleno refeitório do hospital, sem apelo nem agravo! Na primeira vez que se amaram conceberam Daniel e sabiam que nunca se iriam separar. Até que aconteceu...
Quando terminou a espiral de memória e sentmentos, o elevador abria-se no 8º andar, da neurocirurgia. As suas colegas elogiaram-lhe o aspecto, ele que aparecia sempre por ali com a farda ou então com os olhos cansados e a roupa desalinhada, após mais uma noite de serviço. Entrou no quarto de Maria e observou-a demoradamente antes de se sentar. "Será que as pessoas acreditam mesmo no aspecto de Bela Adormecida que têm as personagens dos filmes, quando estão em coma?" Maria apresentava-se pálida, os lábios quase sem cor. O cabelo, outrora brilhante e farto, estava rapado por causa do monitor da pressão cerebral que lhe perfurava o crânio e estava suturado ao couro cabeludo. Uma cânula de traqueostomia entrava-lhe pela base do pescoço e estava conectado aos tubos do ventilador que trabalhava ritmadamente e com um sopro demasiado parecido com um gemido. Um tubo de plástico flexivel saía-lhe do abdómen e estava ligado a um sistema de alimentação artificial. Um balão de soro estava ligado ao catéter venoso central que lhe perfurava a virilha até à artéria femoral. Um saco de recolha de urina denunciava uma algália. O limites do seu corpo confundiam-se já com os limites do colchão. Os monitores mantinham-se placidamente a desenhar as linhas que demonstravam que Maria não tinha dor. Física, pelo menos.
Sentou-se. "Maria, temos de falar." Subitamente o alarme do monitor dispara e Artur constata que o coração de Maria tinha acelerado! Ele continuou calmamente: "Foste o meu primeiro Amor. Contigo descobri-me e descobri-te, descobri o prazer, a paixão, a vertigem, a calma, a segurança, a paternidade. Mas também provei a dor. Ainda a provo hoje, a todas as horas. Eu amo-te Maria, mas não este corpo que não és tu! Eu jurei cuidar do teu corpo até ao final dos teus dias até porque fui um cobarde! Perdoa-me, não consegui desligar-me de ti e desligar estas máquinas. Sei que não querias isto... esta não és tu, é apenas o teu corpo." O monitor mostrava agora frequências cardíacas irregulares. "Venho hoje aqui falar-te de Alice. Sinto com ela hoje o que sentimos juntos à 16 anos. Estou morto sem ti, Maria. É o Daniel que me impele a continuar mas Alice... Alice ilumina o negro que me envolve, alivia a dor que me fustiga, alimenta o meu ser definhado. Eu... eu... amo-a. Perdoa-me, nunca te abandonarei, serás sempre a dona de parte do meu coração... Perdoa-me." O silêncio tomou conta do quarto, Artur olhou o monitor... um batimento fora do compasso e todas as linhas mostravam agora frequências baixas, típicas de quem dorme um sono profundo e descansado. O peito de Maria subiu, contrariando a tirania do ventilador, revelando um suspiro e Artur gela ao perceber um subtilíssimo esgar facial de Maria. Um sorriso. Artur verte uma lágrima, beija a face imóvel de maria e diz: "Obrigado... não esperava outra coisa de ti."
Saiu do quarto e pensou que lhe apetecia mesmo um café.
Já está!! Um pouco longo, desculpem, mas precisava de esclarecer a relação entre Artur e Maria já que alguns comentários o acusavam, injustamente de ser um prevaricador, de estar de alguma forma a trair Maria. Começo a gostar deste tipo... Agora amiga Ana, sempre quero ver como ele se safa no café!! Ah, e não ponhas a Alice de folga!!!!
9 comentários:
Bem... E já chorei e tudo...
Miguel, o diálogo que ele tem com a Maria é qualquer coisa de muito sensível e bonito. Vê-se que foste buscar os teus próprios sentimentos algures aí dentro de ti e como noveleira é isso que tenho que fazer tantas, tantas vezes e é isso que torna uma boa ideia, numa cena fantástica. Conseguiste mais uma vez! Parabéns. Diz lá que isto não faz bem à pinha?
O facto do Artur ser enfermeiro, bem como de Maria estar em coma leva-me para a minha própria experiência.É muito fácil escrever sobre algo que se conhece por dentro, e o diálogo, bem isso vem depois de ouvir muitas e muitas conversas do género entre familiares de doentes, em coma ou não. Parecendo que não, facilita!!
Espero que estejam a gostar!
Sempre quero ver o que se passa agora entre Artur e Alice, uma vez que eletem já a "permissão" de Maria!!
Estou comovidíssima, pelo teu relato do estado da Maria. Tu melhor do que ninguém sabes descrever como é. Mas eu também sei, não com todos esses termos técnicos, mas porque vivi essa situação de muito perto. Tive assim a minha mãe,tal como a Maria durante quatro meses num serviço de neurocirurgia.Nunca recuperou. Eu também falava com ela. Não sei se me ouvia ou não mas contava-lhe diariamente o que me acontecia.
Estou triste, mas isto vai passar. Continuarei a seguir a história.Beijinhos
Acho que a novela está bonita e emocionante. Aguardo desenvolvimentos!
Lamento Mariinha, pela tua mãe. Um beijinho de força e solidariedade, já que o meu avô também esteve em coma 15 dias... e morreu no meu dia de anos, há 10 anos.
Conheci hoje e gostei muito do blog...(Só parei depois de o ler todo :))
Parabéns!
Abraço
Gustavo Fernandes
Boa Miguel!
Conseguiste descrever deliciosamente a timidez do Artur.
Boa!
;)
E a parte 8 já espera por ti...
Miguel, adorei o "parecendo que não, facilita".
Agora a sério, pareces profissional da coisa. E estou a a-d-o-r-a-r esta desgarrada, aliás como já tinha dito à Ana C. E as emoções agora saíram de ti ;-)
Palmas, palmas. Para os dois. Agora vou ler o o dela para depois vir aqui ao teu. Isto anda numa velocidade que me custa a acompanhar! :-)
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