sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Parado na faixa central da auto-estrada.

Depois de tantos e tantos casos que, directa ou indirectamente, me passaram pelas mãos há uma condição clínica à qual não consigo ficar emocionalmente imune: o AVC. Porque em muitos casos o doente está consciente e orientado, pensa, raciocina. Mas não consegue verbalizar a sua dor, o seu desespero, a sua revolta. Porque, de um momento para o outro, vê-se numa cama estranha com montes de estranhos a alimentá-lo à boca ou por uma sonda, a dar-lhe banho, a expor o seu corpo em partes que só ele conhecia até então, a mudar a fralda. De um momento para o outro estamos deitados em cima da nossa própria merda.
Com demasiado tempo para pensar, estamos sós mas rodeados de gente. Gente que não nos entende porque não somos capazes de falar ou porque estão demasiado apressados nas suas rotinas. Presos num corpo, num quarto, num hospital. A vida parou. É como se estivessemos parados na faixa central de uma auto-estrada onde toda a gente passa a mais de 120 Km/h. E a desejar ser atropelados.
Porque a vida real pode ser mais assustadora que qualquer filme de terror e mais tocante que qualquer drama de Hollywood. Hoje recebi mais um destes presos. Os seus olhos penetraram fundo nos meus, tentando que a sua mensagem penetrasse no centro da fala do meu cérebro. Não ouvi nada mas senti. Primeiro um apelo, depois a revolta, a fúria de não ser compreendido. o desespero e, por fim, a desolação. É sempre assim.
Enquanto lhe colocava colheradas de iogurte na boca, uma lágrima escorreu-lhe pela face. Olhou para mim. O iogurte acabou. Saí.

17 comentários:

Bypassone disse...

Miguel, às vezes algo tão simples como dizer "nunca passei pelo que você está a passar, mas compreendo perfeitamente o seu sentimento de revolta/impotência/confusão/desespero" (com as tuas próprias palavras, claro) pode fazer toda a diferença. Pelo menos essa pessoa, ouvindo isso saberá que, apesar de não poder comunicar, não se encontra totalmente só...
(mas isto é só a minha opinião de leigo total no assunto....)

Unknown disse...

Tive o caso do meu tio com 54 anos lhe acontecer isso... não sou muito, muito chegada, mas durante 2 semanas corri para o hospital para lhe dar a mão, o iogurte e até o jantar... dói muito!

Tenho que lá voltar hoje que já não o visito há mais de 1 mês... merda de vida!!

Beijocas

Naná disse...

O meu avô teve um AVC ou vários que foram levando cada um a sua função: primeiro a mobilidade - o corpo deixou de obedecer. Mas em segundo veio aquilo que acho que foi o pior: a falta de lucidez. O meu avô não ficou parado na faixa central da auto-estrada... o meu avô regressou a 30 anos antes,quando ia à pesca com os amigos por quem gritava noites a fio, e aos tempos em que tinha duas vacas e levava a noite a lavrar com a Raminha e a Malhadinha...
Nunca mais me esquecerei da tarde em que eu, com apenas 9 anos, o ouvi implorar para o "desamarrar daquela cama de paus de pinheiro" em que "o estavam a torturar"... porque eu era a única a quem ele ainda reconhecia e sabia quem era.
O meu sogro também teve um AVC, mas apenas teve 8h para assistir à angústia da mulher e dos dois filhos, e depois ficou em paz...

Ana. disse...

Adoro e ao mesmo tempo odeio quando escreves assim.

:|

Laetitia disse...

Estas situações são mesmo de partir o coração:(

Lia disse...

bem...agora deixaste-me com um aperto no coração!!! Sempre disse: não tenho medo de morrer, tenho medo de ficar prisioneira do meu corpo antes de o fazer e cada vez acho mais isso!!!

Mulher a 1000/h disse...

E ainda dizem que os profissionais de saúde não se envolvem... eu sempre disse, vocês são só humanos! :) Se for vítima de um AVC um dia, Deus me livre e guarde... gostava que alguém me desse colheradas de iogurte, sabendo aquilo que estava a pensar! Talvez pudesses ter só verbalizado alguma coisa... digo eu! Mas que sei eu?! ;)

Sílvia disse...

E depois escreves estas coisas e eu revivo muito do que se passou à tão pouco tempo... Não comigo mas com alguém que continuo a amar mesmo que já não esteja cá, e que por isso é quase como se fosse comigo...

***

Nuvem disse...

é uma mágoa terrível para os pacientes e para quem os assiste, que não os consegue entender ou escutar!
Coragem... amanhã é sábado :)

Anónimo disse...

Era interessante partilhar o que aconteceu entre o espaço de tempo em que aquela lágrima se libertou e você saíu... Mais que as colheradas de iogurte, esses são os momentos realmente relevantes como sabemos... :) também me "tocam" de forma especial esses casos.

Banita disse...

Deve ser assustador sentir-se preso dentro de um corpo que já não funciona...
jitos

Luh disse...

[GLUP] engoli em seco...
aaaiissshhh

Bretana disse...

Lidar com a dor dos outros pode ser mais difícil do que lidar com a nossa própria...!Não é para todos !bjs

cristina disse...

Pronto ja chorei, sei exatamente aquilo que estas a dizer passei pelo que descreves e acredita Miguel ninguem consegur mesmo quantificar o que nós sentimos foi a melhor e a pior expreiencia de vida de que tive ter ficado aos 24 anos a vegetar porque senao fose isso nao era decerteza a pessoa que sou hoje, a vida é mesmo assim

cristina disse...

Pronto ja chorei, sei exatamente aquilo que estas a dizer passei pelo que descreves e acredita Miguel ninguem consegur mesmo quantificar o que nós sentimos foi a melhor e a pior expreiencia de vida de que tive ter ficado aos 24 anos a vegetar porque senao fose isso nao era decerteza a pessoa que sou hoje, a vida é mesmo assim

Anónimo disse...

Não basta pensar numa profissão que possa ser bem remunerada para o futuro. Acima de tudo há que ter vocação, consciência e sensibilidade para se compreender o sofrimento alheio, conseguir ler nos olhos de quem não se consegue expressar oralmente.
Ainda bem que é um profissional que gostam daquilo que faz, porque se assim não fosse não escreveria estas linhas com tanta emoção.
Obrigada, em nome de todos aqueles que não puderam lhe agradecer.

PAXCS disse...

Lá está outra vez aquele teu dom da escrita que é capaz de levar aos extremos da emoção: ora agora ri-se, ora agora está-se a chorar.

Este post trouxe-me mais uma vez à memória o meu avô materno...raio de vida, pá. eu sei que ele já tinha 85 anos mas, que raio, no espaço de uma semana vi-o sofrer como nunca o tinha visto sofrer em todos os meus 31 anos...

e o pior é saber que eles conseguem perceber tudo o que está à sua volta (pelo menos o meu avô sei que conseguia), querem falar e não podem, querem mexer-se e não conseguem, e olham-nos de uma forma que nos dá...pena? raiva? nada disso, dá-nos vontade de trocar de lugar com ele porque custa tanto vê-los naquela aflição...

Nunca me atraiu a medicina, nunca quis ser enfermeiro, e os AVC (pelo, menos os hemorrágicos que foi um desses que levou o meu avô) são uma das razões porque acho que não tinha estofo para isso.

Miguel, para ti todo o meu respeito por exerceres a profissão que tens com toda a humanidade que é possível.